quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Copas



A sala é pequena assim como toda a casa e na falta de mais alguém para que o tempo passe mais rápido, ela deita as lâminas do baralho uma a uma em ordem decrescente em cima da mesa onde há somente um cigarro aceso e um cinzeiro como companhias enquanto o relógio na parede insiste em resmungar um tique-taque incessante. Nenhum dos três liga para qualquer som externo.

Pensou em colocar algo para tocar, porém, a cada carta que a mulher pegava em suas mãos, trazia à tona alguma lembrança e nenhuma delas seria recordada ou esquecida se  outra carta não fosse posta junto as outras. Já tinham se passado duas horas.


A infância na casa ampla e ensolarada, o convívio com as irmãs, as brincadeiras de menina e os aromas e sabores que marcaram a criança que um dia foi, tudo estampado  no Ás de Ouro que trouxe consigo a juventude, os primeiros amores, os tantos desamores, os excessos e descobertas de um Cinco de Copas que a perturbou, pois as memórias eram muitas e desencontradas.

A decadência da família, antes dona de boa parte dos negócios da cidade, as primeiras dificuldades financeiras, a separação dos pais, o casamento das irmãs e a dissolução rápida de seu mundo mostrado em cartas de Espadas como se fosse um espelho que salienta todas as rugas e marcas de expressão que a mulher nunca gostou de ver.

Após isso, a vida que não foi nem boa demais nem insuportavelmente tirana, apenas morna como um café que se esquece de beber a tempo. Foi acostumando a querer que nada ficasse pior e que tudo se estabilizasse nas cartas do naipe de Paus.

Levantou da mesa e abriu a janela que mirava toda a parte baixa da cidade. As luzes começavam a se acender enquanto a claridade morria suavemente. Ela olhava a vista de dentro de si e deixava a cidade vê-la na esperança de que algo extraordinário pudesse acontecer e é nesta hora que a campainha toca e as mesmas malas que um dia deixaram a sala que ficou vazia, decidiram trazer alguma companhia de volta.

Sem oferecer resistência ou questionamento algum, ela guardou o baralho.

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