terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Adão


A certeza de um dia sem surpresas foi o que motivou Lúcio a levantar da cama naquela sexta-feira, afinal, faltava só mais um dia para o final da semana e tudo estava planejado para que o sábado e o domingo fossem intensos (que o diga o número de telefone dentro do bolso de seu casaco). De súbito percorreu o percurso Chuveiro-Toalha-Cafeteira-Café-Pão-Geleia-Bolsa-Chave da casa-Porta-Portão-Rua, com um vigor digno de um atleta que corre a São Silvestre. Encarou sem nenhum contragosto a parada de ônibus e os 20 minutos que levaram para o coletivo aparecer. Entrou e logo conseguiu um assento ao lado de um senhor. Camisa social branca, calça de linho, talvez trabalhasse no comércio ou fosse algum tipo de pastor.

“Desculpa, senhor, tem horas?”, perguntou timidamente o rapaz.

“São quinze para as oito, menino. E pode me chamar de Adão.”, disse o homem.

Ele ainda estava no horário. Aquele dia seria bom, o trabalho passaria rápido e logo ele estaria sentado em algum bar, tomando um chopp e talvez conseguindo levar a dona do número de telefone (aquele do bolso do casaco) para casa ou para mais um encontro. Nosso Don Juan era daqueles caras trabalhadores, dos muitos que existem por aí. Tinha um emprego modesto, mas conseguia pagar as suas contas e ainda economizar um pouco para os tempos “imprevisíveis” como ele mesmo gostava de classificar.

Lúcio empilhava títulos de Empregado do Mês na Farmácia Central, a mais conhecida de sua cidade. Começou a jornada empolgado. “Bom dia, meu rapaz.”, disse um senhor já de bastante idade e de voz frágil, “Eu preciso daqueles remédios para gripe, sabe? Tem feito muitas friagens nesses dias, nóssinhora!”

“Eu tenho aqui cápsulas de Resfedina. Elas são muito boas para prevenir esses resfriados. O senhor vai querer estas? Sim, elas são baratas. São 2 reais a cartela com quatro cápsulas. Ok, então, eu só preciso saber o seu nome para colocar aqui no pedido.”

“Meu nome é Adão de Souza.”

Lúcio fez uma expressão de estranhamento. Já era a segunda vez em menos de uma hora e meia que ele interagia com duas pessoas que tinham o mesmo nome. Quais eram as chances daquilo acontecer? E quantas pessoas estariam passando pela mesma coisa ou já tiveram passado por aquilo. O atendente logo esqueceu do ocorrido, pois o fluxo de clientes na farmácia estava intenso naquela manhã.  

Saindo do trabalho ao final da tarde caminhando pela calçada, ele passou por um policial militar. O agente passou tão perto dele que foi possível notar a sua identificação: “Adão”, estava escrito. Aquilo estava esquisito, mas pior era o frio que fazia naquela tarde-noite, então Lúcio resolveu passar numa lancheria e pegar um café para a viagem e esquentar o corpo e o coração porque a hora da ligação que ele deveria fazer estava chegando e com ela a expectativa do encontro de logo mais.

Ele abre a porta da lancheria, modesta com bancos altos virados para um balcão antigo cheio de salgados parecidos com aqueles que a vó de qualquer um faria a qualquer hora. O ambiente cheira a fritura e a pó de café. Uma cafeteira gigante solta fumaça como um dragão de filmes onde dragões aparecem e fazem coisas que dragões fazem.  

“Um café.”, pede Lúcio.

“Com leite?”, pergunta o balconista.

“Puro, por favor.”

Ainda com aquelas coincidências na cabeça, Lúcio resolveu perguntar o nome do homem que servia o seu café. E para a sua surpresa também era Adão. Foi a gota d’água.

“Com licença, senhor”, se dirigiu a um homem que devorava um croquete sentado em uma mesa, “Como você se chama?”

“Que pergunta, meu! Me deixa comer!”

“Por favor, só me diz o seu nome e eu não lhe incomodo mais”, insistiu Lúcio.

“Meu nome é Adão, cara. Agora posso terminar de comer?”.

Intrigado, resolveu perguntar em voz alta se mais alguém ali tinha o mesmo nome, que levantasse a mão, Todos os homens que estavam comprando, comendo ou simplesmente passando o tempo levantaram as mãos. Esqueceu do café e do frio correndo em direção à rua e indagando todos os homens que passavam pelo seu caminho sobre seus nomes e para o seu estranhamento total as respostas não variavam.

Até que um Adão resolveu estender a conversa.

“Você é maluco, rapaz? Sair por aí perguntando o nome de todo mundo. Você não parece alguém que deva ser internado.”

“Isso é brincadeira. Deve ter havido algum engano, sei lá. Uma cidade toda não pode ter o mesmo nome. É impossível. Você tá entendendo?”

“Ah, é? Então qual é o TEU nome?”, disse o interlocutor de Lúcio num tom incisivo.

“Lúcio. O meu nome é Lúcio.”

“Hahahahaha. ISSO é brincadeira. Você realmente tem problemas, garoto. Vai procurar um médico.”

Lúcio foi ao encontro, teve algum sucesso com a dona do telefone. Ela realmente estava afim daquela noite e de mais alguns encontros, foram mais três. No quarto encontro, a menina botou as cartas na mesa (já se sentia confortável para falar de coisas mais sérias).

“Olha...Lúcio... você é um cara muito legal e eu gosto de ficar contigo, mas tem uma coisa que me incomoda um pouco...”. A moça estava hesitante.

“O que? Fala. Vamos resolver já. Assim não temos tempo dessas coisas virarem piração.”

“É sobre o teu nome. Pronto, falei.”

“Hã??”

“Sim. O teu nome... Não curto o teu nome, mas isso não quer dizer que eu não goste de você. Só vou ter que acostumar com ele.”

“Sério? Mas esse é o meu nome. Eu não posso trocar!”

“Eu sei. Mas existem nomes melhores. Ó, Adão, por exemplo. Eu acho um nome lindo.”

O mundo estava de cabeça para baixo e não havia mais jeito de voltar ao normal. Lúcio foi ao cartório e virou “Lúcio Adão dos Santos.”


terça-feira, 24 de dezembro de 2013

O Espírito do Natal passado

A época natalina sempre deixou Denilson tocado. Era coisa que o acompanhava desde criança, para ele, era mais do que especial ter a casa cheia de gente, a árvore repleta de presentes, estar perto de seus familiares e que todos estivessem alegres e ali para comer, beber e sorrir. Ele adorava comprar presentes, encher a casa de luzes e fazia questão de cuidar junto com a esposa de todos os preparativos da grande noite.

Dezembro chegou e com ele a proximidade dos dias mais importantes para o bancário que mais investia em Natal dentro de toda a rede do Banco Regional. Para alguns já era até piada, mas Denilson não se importava e ante as pilhérias dos amigos trazia para o trabalho um mini pinheiro e o posicionava em sua mesa para que todos pudessem ver.

Uma noite, após terminar a instalação das luzes na frente de sua casa, Natalino (sim, esse já era o seu apelido de longa data), foi dormir antes de sua mulher. Ele estava satisfeito porque seus projetos estavam dando certo mais um vez. Assim que desligou o interruptor de luz Denilson deu um pulo da cama quando viu um clarão se formar em frente a sua cama.

“Denilson! Preciso falar contigo, cara!”

“......e-e-eu-c-como assim?! Quem é você??”

“Ah não! Toda vez as mesmas perguntas! Vocês não conseguem inventar outro tipo de resposta sem que seja perguntando de volta? Ok. Eu tenho muitos nomes, mas agora me chama de Mitra. Digamos que é o meu nome da semana. Se nunca ouviu falar de mim procura no Google ou YouTube, tem um pessoal que me acha bem popular lá. Tem gente que até acredita que um outro cara que nasceu no mesmo dia que eu sou eu. Mas também acham que ele não era cabeludo, não era branco e não era uma pessoa legal. Nossa! Cansa só de ouvir toda essa contradição! Hahaha”

Denilson, mal conseguia enxergar porque o brilho em volta de Mitra era muito forte, mas pior era o sentimento de atordoamento e incredulidade. O que afinal de contas estaria acontecendo e o que aquela coisa queria?

“Não me machuca! Meu Deus, me salva!”, gritou ele num estado quase desesperador.

“Calma, Denilson... Calma, meu!! Caaaaalmaaaa!”, gritou de volta o jovem de cabelos dourados e roupa que se assemelhava a de um soldado romano. “Eu vim aqui pra te pedir um favor. Eu só posso pedir um favor por ano a alguém, não me faz ter perdido um ano inteiro, meu querido! Respira, ok? "

“O que você quer?”

“Quero que você me ajude a recolocar o festival em honra a mim (apontando para si com os polegares) na data certa mais um vez. O que seria daqui a dois dias (25 de dezembro). Em troca, você ganha um flat no Monte Hara, que é o equivalente a um Alphaville nos céus, por toda a eternidade. Você tem um ano pra recolocar isso nos eixos. Já perdi muito tempo e ando perdendo popularidade. Fora da internet ninguém mais me conhece. Meu, eu sou o sol do mundo novo. Trago luz pra essa joça e como assim viro um zé?”
Enquanto a aparição falava, Denilson tentava lembrar de todas as orações possíveis. Faltava memória.
“Eu nunca ouvi falar de você, Seu Mirra.”

“Aff... Mitra.”

“Isso. E Natal é outra coisa. É o nascimento de Cristo. Todo o mundo sabe disso.”, protestou o bancário.

“Eu sei, eu sei que eu demorei um pouco aí pra realmente tomar uma atitude, digamos, efetiva, mas agora eu tô aqui pronto para virar este jogo e retomar o que é meu por direito. É a minha data, Denilson. Imagina só, se alguém roubasse o teu aniversário, tipo, pra sempre. Tu ia gostar? Hein?... Claro que não.”

“E como eu faria isso?”

“Tenho alguns planos para melhorar a minha imagem. Primeiro: ninguém compra mais presente. Sem troca de presente. Eu tenho uma equipe que fez uma pesquisa e cheguei a conclusão que isso não condiz muito com a minha imagem. Talvez uma troca de insenso, de uns tecidos bonitos e mais nada. Outra coisa, que eu gostei e a gente pode manter é a coisa das luzes. Gosto disso e tem a ver comigo. Luzes nas casas, nas ruas, luzes pra sempre!”

“Você tá de brincadeira. Só pode...”

“Não, Denilson. Eu só estou aqui jogando ideias. É um Brainstorm. Fica bem à vontade para dar as tuas sugestões. Estive pensando num nome, uma coisa mais moderna e que, é claro, remeta à minha pessoa: Mitral. Aí as pessoas se desejariam ‘Feliz Mitral’. E aí? Você tá muito calado, cara! Me ajuda aqui, por favor!”

De repente, a luz do quarto acendeu e assim que Elisângela apareceu na porta Denilson correu assustado para fora do quarto, da casa e ganhou a rua para tomar fôlego. A mulher conseguiu alcança-lo, intrigada e sem entender nada.

“O que houve, homem do céu?”

“Acho que ando exagerando no Natal, amor.”

Compraram passagens e embarcaram para o nordeste no outro dia. Deixando todos os convidados desapontados sem a grande festa de Natalino.

Feliz Mitral. Feliz Natal.





segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Lap Dance
















A música é lenta, convidativa. Depois de um dia duro e de um mês de noites frias resolvo fazer algo novo e diferente que aqueça o coração e solte a mente junto a um gole a mais de qualquer coisa.

Sendo assim, existe coisa melhor que ir em busca de um amor maquiado? De alugar uma atenção qualquer?

O lugar foi escolhido aleatoriamente. A única preocupação era achar um lugar que eu pudesse entrar e sair vivo. Eu sabia o que queria: uma dança e uma bebida.

Obviamente nenhum destes estabelecimentos “de entretenimento interpessoal” são de fácil acesso, mas resolvi correr o risco. Saí do escritório mais tarde, desliguei o celular para que ninguém resolvesse me contatar àquela hora, nem mesmo a minha tia lá de Governador Valadares pudesse ter uma vontade estarrecedora de falar comigo e conseguir. Hoje não.

A decisão de para onde ir até que foi bem fácil. Uns trinta minutos de uma pesquisa rasa na internet me deu todas as informações que precisava. No verso do cartão de um cliente um endereço anotado e um nome Heaven Club. O nome me soava pouco ordinário, mas não no sentido de comum, mas de ordinário mesmo, pouco condizente com o lugar. Eu era um cliente desconfiado com o serviço que me seria oferecido.


Eis que estaciono o carro em uma rua transversal a do lugar, por motivos de pura lógica. Tirei relógio, corrente, aliança e deixei tudo dentro do porta-luvas. Saí do carro como se fosse um adolescente outra vez. Um homem de meia-idade, de terno e gravata escuros que deixava o rosa do neon do letreiro na parede fazer com que ele parecesse ainda mais misterioso, quase assustador, era quem cuidava da entrada.

Ele me balbuciou um boa noite e liberou a entrada da porta para que eu pudesse entrar. Não queria bancar o novato, empurrei a porta, ela dava num corredor longo e escuro só se via com nitidez a marca circular de luz moderada de dentro do salão. Abri a segunda porta com um ar decidido e dei de cara com um balcão e uma senhora, sim, uma senhora dos seus sessenta anos, mas em roupas um tanto ousadas. Ela logo foi me perguntando o que ia ser.

Fiquei meio sem ação, pois não esperava aquela sexagenária ali logo de cara. Ela repetiu a pergunta com muito menos paciência. Disse que queria uma bebida.

“Só a bebida?”

“Quanto é a dança?”

“Depende do que você vai querer.”

“Como assim?”

“A mais barata é sem contato algum, já a com contato é o dobro do preço: é R$ 100.”

Já que estava ali mesmo era melhor pedir o pacote completo. Seria só aquele dia mesmo, que fosse memorável. Ela me deu um cartão com um número, era o número da sala para onde eu deveria ir porque as salas de Lap Dance (era o que estava escrito no cartão) ficavam no fundo do clube.

Entrei na sala 6, era o que o cartão indicava. A sala rescendia a óleo de massagem e cigarro. A luz era ainda mais fraca que a do salão onde homens tinham conversas ao pé do ouvido ou dançavam de rosto colado com mulheres muito animadas e descontraídas que bebiam grandes quantidades de tudo o que se possa imaginar e talvez por isso eram animadas. O álcool faz dessas coisas.

Sentei na única cadeira que havia, afrouxei o nó da gravata e fiquei esperando o grande momento, até que uma música lenta e convidativa começou a tocar e não sei de onde surgiu uma morena de cabelos presos e com uma máscara que lhe cobria a região dos olhos. Ela tinha belos olhos e uma lingerie preta indefectível, com direito a cinta-liga e tudo mais.

A dança começou lenta, como a música e a uma distância segura. Abri o primeiro botão da camisa. Eu estava com calor, resolvi beber num gole só a cerveja que ainda restava na garrafa que havia levado para aquele espetáculo. Tinha valido cada centavo, com certeza. De repente, ela foi se aproximando, jogando os quadris para um lado e para o outro e virando de costas para que eu pudesse ver tudo, sem cortes.

Foi então que ela montou em mim e no ritmo da música, que já nem sabia se estava no mio ou no fim, foi afrouxando os cordões da máscara, lentamente... e foi aí que eu gelei, meu caro!

Quando ela tirou a máscara eu perdi o fôlego.

“Oi, amor... Nem avisou que ia chegar tarde em casa... Eu tinha pedido para você passar na lavandeira e pegar o vestido da mamãe!”

É por isso que eu estou aqui, doutor, para encaminhar os papeis. Quero o divórcio.






domingo, 22 de dezembro de 2013

Nove horas



O sol das nove horas da manhã ilumina o quarto deixando tudo num tom de âmbar. A brisa sacode as cortinas que impedem de voar as folhas que estão espalhadas no criado-mudo. Foi uma longa noite, mas não daquelas em que o espírito cansa de pensar ou calcular mirabolâncias. Não.  Foi simplesmente uma noite a mais. Daquelas em que tudo se mistura, se revela, se apaga e desaparece como se a vida fosse um capítulo confuso e desconexo de um livro mal escrito, mas nem isso importa. Já amanheceu.

Desta vez não adormeci. Ainda estou sentado frente à escrivaninha, com os pés em cima desta. Ao fundo toca uma música que não consigo identificar, parece jazz ou será blues? Nunca sei diferenciar direito. Sinto tuas mãos correrem lentas e delicadas pelos meus ombros em direção a meu peito: início de um abraço ou de qualquer coisa a mais... É um bom começo para o próximo capítulo, melhor anotar logo antes que a memória me traia.

Vejo os lençóis de minha cama. Estão intactos. Antes não estivessem. Estão assim porque o tempo é outro o fuso horário também. Quartos de hotel são irritantemente impessoais e me irritam profundamente porque não me lembram nada em especial, só que não tenho nada pelo que esperar a não ser o telefonema da chefia designando as próximas coordenadas. Enquanto isso ainda espero.

Olho de novo para a janela e sinto fome. Ponho meias, calço sapatos, calças e uma camiseta qualquer. Desço as escadas e conforme o vento que se forma pelo simples movimento que exerço bate mais e mais forte contra meu rosto.

“Quer um milho verde?”

É a pergunta que sempre ouço e que sempre tenho certa satisfação em responder: “Não”. Eu nunca fui de muitos vegetais mesmo, mas também gostava de ver a cara de “desisto” dela toda vez que ouvia eu dizer esse não. A expressão dela contra a luz do sol do verão é inspiradora. 

Ela sempre perguntava outra vez...

Ao chegar nos degraus finais da escada, vejo as mesas com o café servido. A variedade é boa, mas hoje acordei (pra vida) com vontade de comer mamão e mais nada. Ok, talvez um pouco de açúcar em cima, para melhorar o paladar,  mesmo porque não precisamos ser tão rigorosos nesta coisa toda de frutas!
Entre uma colherada e outra sinto tocar o meu celular. São eles.

“Como vai o nosso homem mais eficiente?”

“Aproveitando a oportunidade desta vista aqui. Diga...”

“Queremos isso aí entregue até amanhã, ok?”

“Entendido, senhor.”

De volta ao quarto, começo a organizar meus instrumentos de trabalho. Se eles falassem teriam muita história para contar. Um a um, os posiciono sobre a mesa me certificando de que nenhum deles seja esquecido. São parte importante do meu trabalho, as vezes penso que têm importância maior do que eu mesmo.

Desliza pelas cortinas uma brisa leve com cheiro de verão. Junto a ela um perfume que me lembra de muita coisa. Um perfume adocicado, que me lembra o cheiro dela e, não a deixe ouvir, de todas as outras que passaram e que por um motivo ou outro não puderam ou não quiseram ficar. Aquilo me embriagou por alguns instantes.

Era hora de voltar a escrever. Não daria para deixar o momento passar. Às vezes me sinto como um surfista. Há de se esperar e esperar até chegar a onda perfeita e nela conseguir mostrar o melhor de sua habilidade.


Usar “Era uma vez” é cliché demais, talvez se usar “Um dia me contaram que...” seria melhor..

Porta-retratos

Quantas árvores sangraram, morreram e renasceram aqui?

Quantos incontáveis grãos, talvez da areia que viajou muito mais milhas do que eu posso imaginar, se uniram pra formar esse vidro que protege a mim agora.

Eu olhando pro nada, com olhar bobo e sorriso alegre que não muda mesmo que algo totalmente do avesso aconteça.

Eu vou continuar ali, imóvel, feliz. Pois um dia num tempo já remoto me fizeste sorrir, olhar com orgulho pr'aquela lente que fria apenas capturou o que via.

Não há mais porque.

Sem mais nem porque.

Tua beleza ficou registrada naquele pedaço de papel. Junto a minha mocidade, que já vai longe. Junto a minha ingenuidade, já morta. Junto a minha felicidade, já torta.


Desentorta. Ajeita na parede nosso quadro e no criado-mudo o mais belo porta-retrato de outrora. 

Deixa aí.


Vórtice

“Eu não acredito!! Coisa boa te ver de novo! Vem cá, me dá um abraço!” Meu estômago embrulha, dá voltas. Nem a maior montanha-russa na qual eu já estive fez algo semelhante comigo...



A porta se abre. Vejo uma casa a qual não conheço e tudo o que está dentro dela não me pertence. Causa-me certo estranhamento pisar nesse chão e é como se tivesse entrado num vórtice que me sugou e me deixou sem as memórias de quando e como acabei nessa situação.

Nada me agrada. De repente, um rapaz novo de roupas em tons escuros me aponta para uma mesa de jantar com uma toalha simples, mas bem ornada, dentro de uma sala de jantar não muito grande. Ele me pergunta se eu sei o porquê de aquela toalha estar ali daquela maneira, respondo que não faço ideia. Então ele me diz algo sobre o esoterismo, portais e outras coisas cósmicas. Penso em quanto tempo eu não vou à igreja, depois constato que nunca fui muito de igrejas ou lugares sagrados mesmo.

Após a pequena lição ele me acompanha alguns passos a mais até um corredor horizontal com duas saídas, uma para a sala de estar onde uma mulher de meia idade, muito bem vestida, com os cabelos presos num coque e dentro de um vestido florido, quase como aqueles que se põe para ir à festas, assistia calmamente algo na televisão.

Na cozinha, era ela de costas. Até de costas ainda a reconheço. Conversava com uma outra mulher que ao me ver sumiu. Quando enfim fui notado, ouvi um, “Eu não acredito!! Coisa boa te ver de novo! Vem cá, me dá um abraço!” e se aninhou em mim. Ainda vestia um pijama de cores claras: calça, blusa e um robe aberto que era algo como rosa-claro ou azul-bebê. Ao vê-la, fiquei contrariado. Não pude evitar...

Senti algo como um apagão outra vez, aí o tom da conversa já estava em “Josias quis saber por que você não foi conhecê-lo ... ”.

“Você só pode estar brincando! Tá achando que eu sou o que? Palhaço, por acaso?”

“Não grita! Tem muita gente aqui. Não quero que nos ouçam.”

“Não me interessa que nos ouçam... Eu nem sei o que me trouxe aqui..”

“Não fala assim. Você não o conhece. O pai dele é muito poderoso. É dono de muita cosia. Tu vai correr perigo se ficar se negando a fazer o que ele quer..”

“É assim que você é tratada, pelo visto. Ainda reage na base do medo porque o pai dele....Quer saber? Por mim o pai dele pode ser Deus. Ele não é mais homem do que eu! Isso é patético!”

Abri os olhos com a cabeça e os braços dormentes...


Cantor de fruteira


“Para mim, cada cidade é um porto. Um lugar por onde passo e só. Ás vezes me imagino como algum marinheiro do asfalto, um viajante de todo lugar, mas de lugar nenhum”, disse ele como quem joga a rede e espera paciente o peixe que se descuidará e entrará no meio do emaranhado de fios. Luan tinha boas ideias. Hoje, ele “conversava”, como o próprio gostava de definir para os amigos, mais por esporte que por outro motivo. “Você viaja muito?”, perguntou a menina morena de rosto arredondado e olhos escuros que pagava as ameixas no caixa da fruteira. Pronto. Agora era só puxar a rede. “Claro! Tenho muitas histórias de viagem. Quer ouvir mais?”

Ela sorriu, pegou a sacola de frutas e disse um tchau que segundo a definição do dicionário de ironias da civilização, codificado depois da descoberta dos Jardins Suspensos da Babilônia e do Código de Hamurabi, queria dizer “Que papinho sem graça! Eu, hein... ”, que ainda segundo o mesmo livro significa: “Aquela retórica que é proferida em um lugar impróprio e é execrada cordialmente pelo interlocutor”.

Enquanto isso entre as maçãs argentinas e a caixa de carambolas, mirando o espelho posicionado de maneira muito criativa em cima das frutas para que se tenha uma ilusão de ótica de maior quantidade de produtos, outro peixe havia sido fisgado sem nem ao menos ser considerado pelo pescador. Alice conhecia Luan desde a época das aulas de canto. Aulas estas que ele odiava, mas fora matriculado por insistência de tia Albertina, a soprano da família que costumava se apresentar em bingos beneficentes e jantares do Lions Club, uma sociedade semi-secreta onde a nata da maturidade abastada da cidade se reúne para expor sua burguesia e organização sem medo de represálias.

Voltando a Alice, ela sempre gostou de Luan. Achava-o bonitinho, com boa voz, etc, etc. Já ele, só queria saber de cantar Tim Maia em inglês. O que foi um dos grandes desafios de sua adolescência.

“We gonna rule the world
Don’t you know? Don’t you know?..”

E sim, a fase “racional” do velho Tim era a sua preferida. Ela odiava, mas nem ligava, era ligada no estilo dele e em seu groove ao interpretar. Hoje era o dia. Ia ser agora. Ele ia notá-la!

“Oi... eu estava ali escolhendo umas carambolas e não pude deixar de ouvir, você é um viajante? Sério? Eu gostaria muito de ouvir as tuas histórias.. bom... a gente nem se conhece, né? Nossa, que vergonha! Eu sou a Alice, prazer..”

“Hãmm.... ah...oi... Eu...Meu nome é...Luan...”

O cantor de outrora não se sentiu confortável com aquela situação e acabou por dizer qualquer coisa para a menina, sorriu com educação, disse que contaria mais sobre suas viagens, com todo o prazer, mas havia lembrado que hoje tinha algo importantíssimo para fazer. E foi embora.

Deixando Alice absorta em seu mundo de frustrações, entre os brócolis e as couves-flores.


“Os homens têm medo da paixão/Ela fere, ela mata/como um dragão”