sexta-feira, 19 de abril de 2013

Contraconto


Há tempos que não vemos a luz do sol. Nosso povo tem fome. Guardei esse pedaço de papel como se fosse a minha própria vida junto com essa vela. Nosso povo está em guerra. Contra tudo, todos e contra si mesmo há tempo demais.

Nosso rei é um lunático. Depois que nossa rainha foi levada pelo inimigo ele nunca mais a encontrou e vive de espada desembainhada. Queima pontes, não abriga estrangeiros e mata todos os que acha suspeitos. Já foram oferecidas diversas princesas para aplacar a sua ira, mas de nada adianta. Um homem repleto de amor, mas cego de ódio é o que temos aqui.

Antigamente nem sabíamos quem ele era, pois não gostava de aparecer e éramos tão estúpidamente felizes que nem pensávamos nisso e, sinceramente, achávamos graça nesse certo mistério que nosso rei fazia e a privacidade que tinha com sua vida pessoal. Mas após a primeira invasão e o sequestro da esposa ele passou a não se importar com mais nada.

No dia em que um imenso dragão sobrevoou o palácio, parecendo que para coroar a má fase do nosso monarca, ele se posicionou de peito aberto e besta em punho em frente ao castelo e aos gritos de “me leva se tem coragem, seu maldito!”. Gastou toda a sua munição na direção do monstro sem atingi-lo. Parecia que o animal somente queria assustá-lo.

Hoje, o que temos aqui é um homem de cabelos brancos que toda noite olha para além das montanhas sem achar nada, ainda que tenha posto quase todo o exército a procura da mulher que ama.

Todos nós ainda procuramos um final mais feliz.

Como um conto de fadas qualquer


Aqui todos dormem quando querem ou precisam. Ninguém sente necessidade, a não ser uns da companhia dos outros. As estradas são limpas, arborizadas e todos podem brincar e aproveitar cada pôr-do-sol.

Assim é este reino, meus caros. Não há fome ou sede que não possa ser saciada. Não existe atenção que não possa ser dada, nem mesmo abraço que não seja compartilhado.

As pessoas são felizes na imensa maioria do tempo. As crianças tem pais, os adultos sorriem e os idosos contemplam e se reúnem para manter as histórias do lugar muito vivas, pois vivos também se sentem.

Aqui também existe a nobreza. Ela se preocupa muito mais com o bem estar dos outros do que o dela mesma. Tanto, que ninguém conhece pessoalmente o rei, a rainha e sua corte. Apenas se sabe das suas benfeitorias e das mensagens que deixam em placas com o timbre real, que ficam espalhadas pelas ruas. O povo nunca reclamou disso, pois é bem alimentado e saudável.

Estranhamente existe algo na água deste reino, meus amigos, que traz uma mágica. Diz a lenda que há um casal que mora nas montanhas que bebeu dela e nunca mais envelheceu. É verdade que poucos os veem e as informações são desencontradas, mas de qualquer jeito isso deixou nosso lugar mais famoso.

As frutas estão sempre frescas, e as flores, vivas. Nada acaba ou esmorece, assim, de repente.
E o povo vive como num eterno passeio, que nunca termina, que parece que não terá mais fim.

Não há exército e nossas fronteiras não precisam ser guardadas por ninguém porque somos um povo amigável e pacífico.

E vivemos felizes para sempre.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Sol

O sol soluciona tudo o que a noite insiste em esconder e dramatizar. Até o anoitecer...

domingo, 14 de abril de 2013

Grande Hotel


Não sinto os meus dedos. A sensação é incômoda, muito incômoda. Não há onde me abrigar. A não ser em meu casaco, que já tinha visto uns dois invernos antes desse e já não tinha mais toda aquela novidade. Faz frio, um frio que cala a todos.

Passa das seis. Venho descendo as ruas em direção a parte mais iluminada e movimentada da cidade. Só o que se ouve é o assobio do vento que faz questão de ser a minha companhia nessa noite e o barulho do trânsito. Lembro da vitrola e dos vinis que esperam por mim, prontos para me brindar com todas as músicas que já conheço de cór. O bom de conhecer muito bem alguma coisa é que não precisamos de esforço algum para recordá-las.

Paro na calçada e olho para cima. É aqui o hotel onde tenho ficado. Recebo um ‘boa noite’ cordialmente automático do vigia que abre a porta para mim. Entro.

Ao entrar no quarto depois de oito andares num elevador repleto de mim, não me importo mais se está frio. Abro as duas folhas da janela e fico observando o movimento que resta no dia de hoje. Não é possível se pensar em mais nada dentro desse quarto de hotel.

Abro a maleta, coloco a agulha no disco e deixo meus conhecidos entrar e se juntar a mim nessa leitura de sacada.   

terça-feira, 9 de abril de 2013

Ideal



Romances me fazem lembrar o aroma do café, que é muito mais um banquete ao olfato e a todo o resto, do que propriamente para o paladar.

Para sorvê-lo, não se deve ser assim, às pressas. Há de existir certa quantidade de luz, nem de menos e nem de mais, e ainda um ambiente minimamente decente para que o café, de fato, valha a pena.

Sua apresentação é tudo. Tudo pode ser posto a perder se ele estiver numa xícara ruim, de pouca beleza.

Beleza, seja ela exterior ou interior, aproxima em qualidades o café e o amor.

De preferência deve ser quente ou que nos passe alguma ilusão de calor. Nem que seja por algum tempo ou por alguma tarde fria. Se for fria mesmo, tanto melhor .   

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Capoeira


Rodolfo era o tipo de cara que não levava desaforo pra casa. Onde chegava, se houvesse algum tipo de zueira ou mal-entendido forte, ele, que era bom capoeira, já tratava logo de se levantar e saber o que havia.

Não era alto, mas tinha coragem de sobra. Dizia sua tia que foi porque nasceu em noite de lua nova num Outubro há uns trinta e poucos anos e isso fazia toda a diferença.

Um dia, voltando do trabalho. Marmita na mão e com o passo macio. Era trabalhador e não tinha pressa de chegar em casa. Morava só. Até que seus passos cruzaram com os da Rosa. Ela sorriu, mas fugiu dele com a agilidade de passista mulata que era.

Na fuga, levou o coração do capoeira. 

Desde então, todos os dias ele volta pra casa pelo mesmo caminho.