quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Passional

“E eu posso afirmar pra vocês, seus bêbados inúteis! Este país ainda vai ser a maior potência industrial que qualquer um já viu. E neste dia, todos aqui vão lembrar de mim!”
“Gilberto, esse teu progressismo ainda vai te deixar em apuros. Cuidado, homem!”
“Qual nada! Alguém deve começar a pensar pra frente. O Brasil não foi feito para ficar estagnado. Tudo vai mudar vocês vão ver.”
Ao final da pauta inflamada sobre o quadro econômico nacional, Gilberto foi saudado com aplausos e copos ao ar por todos no bar que o ouviam ou que estavam ali afogando o resto de seus dias. Antes que pudesse levar o próximo copo à boca, o orador do “Bar 5 estrelas” sentiu uma mão suave correr pelos seus ombros e achou que era hora de deixar as companhias de sempre por uma mais nova e muito mais interessante.
O quarto rescendia a essência de rosas, sobre a cama. Lençóis simples, mas muito asseados, algumas velas acesas davam ao ambiente um tom de classe e intimidade que servia para que fosse possível “esquecer da rotina e lembrar de nós”, era o que estava escrito no bilhete que Maria pôs no bolso do casaco do marido sem ele perceber antes de sair pela manhã. Ela olhou no relógio e eram nove horas e pensou que tudo bem, talvez ele tivesse se atrasado com o trabalho ou que então estivesse trazendo algum presente para ela. Sorriu e terminou de se perfumar ao pensar nisso.
Ela acordou com o barulho forte da porta sendo puxada por Gilberto. Levantou da cama e ao olhar para o marido viu que a noite planejada tinha acabado. Ele estava bêbado demais para qualquer tipo de coisa que não fosse um banho gelado, mas o que fez Maria realmente despertar foi que depois de alguns instantes o perfume das rosas havia se transformado em algo mais refinado, diferente e feminino, logo ela imaginou o pior.
Checou as roupas do Marido e encontrou um bilhete, mas com outra letra e uma marca de batom. Suspirou baixinho e se dirigiu até a cozinha, pegou uma xícara de café e um cigarro, o último de sua carteira. Ficou observando os ponteiros do relógio. Já eram três da manhã e nada mais soava a não ser a água do chuveiro.
Dentro do banheiro Gilberto voltava a si com a cabeça em giros acelerados e dolorosos. Já não sabia o que tinha bebido, mas parecia forte demais mesmo para ele. Lembrava pouco, mas lembrava que tinha se envolvido com outra mulher. O que e se tinha feito alguma coisa não tinha bem certeza. Pensava no que dizer a Maria e lembrou que aquele era o dia de aniversário de casamento deles, mas agora era tarde demais e o jeito é tentar se safar. Nisso, ouviu os passos da esposa entrar de novo no quarto e abrir a porta do banheiro.
“Amor?...”, tentou a primeira aproximação
“Por que logo hoje?”, disse ela calmamente.
“Foram os caras lá do cartório. Eles disseram que não iam se demorar, que era só uma dosezinha… Olha, me desculpa, tá legal? Eu vou consertar tudo isso, eu te juro”
“Vai sim, Gilberto.”

A vizinhança acordou com os três estampidos que definiram a noite do aniversário de casamento de Maria e Gilberto. Quando os vizinhos chegaram para ver o que houve ela tinha deitado o corpo do marido na cama. Em cima dele estava escrito em um bilhete perfumado com a mesma essência de rosas que já não ambientava mais o quarto, “Para você nunca esquecer de nós”.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Aqui não existe saudade

Era uma vez um vilarejo onde ninguém sentia saudade. Não se engane ou sinta pena, pois este lugar era como qualquer outro e não havia graves problemas. Tudo era completamente igual a todo lugar que você conhece, as pessoas riam, brincavam, comiam, dormiam, se encontravam e de todo modo, viviam, mas não de um jeito intenso ou como se não houvesse amanhã, porque em histórias fabuladas ninguém faz isto. Viviam normalmente.

Quando havia graça a alegria se fazia presente nos lábios e corações, quando esta se ausentava a tristeza tomava conta e isso apesar de triste não trazia surpresa alguma. No lugar era comum a hospitalidade e todos recebiam muito bem todo e qualquer forasteiro que chegasse buscando comida ou abrigo fosse pelo tempo que fosse.

Quem vinha de fora se sentia realmente acolhido, pois sempre havia a quem ouvir sobre as antigas histórias do lugarejo, sobre os costumes locais e sobre as caravanas que passavam ou sobre o circo que por vezes animava a crianças e anciãos. Porém, se perguntados quando gostariam que um destes eventos que tiravam todos de suas rotinas voltasse, diziam:

— Não sabemos dizer. Se um dia voltar, tudo bem.

O mesmo acontecia com as pessoas há muitas décadas. Casais que se gostavam conseguiam ficar dias sem contato, mensagem ou mesmo procura pessoal porque não tinham saudade. Os comentários nas cidadelas vizinhas era que uma maldição tinha sido jogada naquele lugar por uma moça de coração partido. Não se sabia ao certo. A certeza era que tudo acontecia movido mais pela necessidade do que pela vontade saudosa.

E todos viveram de certa forma indiferentes para sempre.

  

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Copas



A sala é pequena assim como toda a casa e na falta de mais alguém para que o tempo passe mais rápido, ela deita as lâminas do baralho uma a uma em ordem decrescente em cima da mesa onde há somente um cigarro aceso e um cinzeiro como companhias enquanto o relógio na parede insiste em resmungar um tique-taque incessante. Nenhum dos três liga para qualquer som externo.

Pensou em colocar algo para tocar, porém, a cada carta que a mulher pegava em suas mãos, trazia à tona alguma lembrança e nenhuma delas seria recordada ou esquecida se  outra carta não fosse posta junto as outras. Já tinham se passado duas horas.


A infância na casa ampla e ensolarada, o convívio com as irmãs, as brincadeiras de menina e os aromas e sabores que marcaram a criança que um dia foi, tudo estampado  no Ás de Ouro que trouxe consigo a juventude, os primeiros amores, os tantos desamores, os excessos e descobertas de um Cinco de Copas que a perturbou, pois as memórias eram muitas e desencontradas.

A decadência da família, antes dona de boa parte dos negócios da cidade, as primeiras dificuldades financeiras, a separação dos pais, o casamento das irmãs e a dissolução rápida de seu mundo mostrado em cartas de Espadas como se fosse um espelho que salienta todas as rugas e marcas de expressão que a mulher nunca gostou de ver.

Após isso, a vida que não foi nem boa demais nem insuportavelmente tirana, apenas morna como um café que se esquece de beber a tempo. Foi acostumando a querer que nada ficasse pior e que tudo se estabilizasse nas cartas do naipe de Paus.

Levantou da mesa e abriu a janela que mirava toda a parte baixa da cidade. As luzes começavam a se acender enquanto a claridade morria suavemente. Ela olhava a vista de dentro de si e deixava a cidade vê-la na esperança de que algo extraordinário pudesse acontecer e é nesta hora que a campainha toca e as mesmas malas que um dia deixaram a sala que ficou vazia, decidiram trazer alguma companhia de volta.

Sem oferecer resistência ou questionamento algum, ela guardou o baralho.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Na exposição

Ele olha para o quadro na parede e não entende nada, mas olha para sua interlocutora e sorri com um jeito de quem reconhece perfeitamente o que vê mais uma vez com um ar quase entediado. Não queria estar ali, preferia algo com mais música, mais bebida e menos gente blasé. Aceitou o convite para a exposição porque costumava aceitar quase tudo o que vinha de seus amigos.

“Não é demais? Toda a expressividade que este artista deu às cores frias e quentes neste quadro, acho que mostra muito bem o que os jovens de nossa época sentem. Toda essa angústia passivo-agressiva…”, dizia sua amiga numa análise que, com toda a certeza, devia ser apenas concordada.

Ele não via nada além de alguns rabiscos salpicados em todas as direções, algo que talvez, só talvez, uma criança de cinco anos também faria, ou quem sabe melhor.

“Ãhn…. claro! Isso mesmo!”

Ao invés da resposta que significava tudo, mas não dizia nada,  pensava na sua serie preferida do Netflix que estava perdendo. Era uma pena porque não teria tempo de vê-la por bastante tempo.

“Vamos até o terraço? Quero pegar um pouco de ar puro.”, Perguntou para ver se conseguia se salvar de mais avaliações cheias de significado.

A amiga aceitou o convite, mas antes conversou com muitos conhecidos que a pararam no meio do caminho para dizer olá ou simplesmente pedir suas opiniões e conselhos sobre outras exposições que valiam a pena na cidade. Ele não sabia até o momento como ela era influente naquele meio apesar de não pintar coisa alguma.

Enfim no terraço puderam conversar em paz e ele pôde ver as luzes da cidade longe dos quadros e de todos os entendidos, pintores, artistas e pseudo-críticos.

“Nossa… Tudo isso dá pra ver só neste quadro?”

“Claro! Não é óbvio? Se não tá vendo isso, você tem problemas”.

domingo, 8 de junho de 2014

Luz Negra

“Com licença! Com licença! ....! ....!!”

Conforme os passos iam aumentando, ia me dando conta que não era necessário e nem adiantava pedir licença para conseguir mais espaço. Àquela hora e naquelas circunstâncias a polidez é irrelevante. Melhor deixa-la pra segunda-feira.

O ar é rarefeito, mas só prestei atenção nisso agora porque é certo que tem mais gente do que quando entrei. Ao simples toque de alguns botões de computador o lugar todo parece entrar em transe, os motivos para esse transe acontecer não são os mesmos: diversão, tédio, álcool, libertação, carência, mais fotos no Facebook. Tudo pode ser um motivo e um gatilho a mais para a melodia cortar feito navalha os ouvidos e a noção de todos os que estão na pista e fazê-los esquecer de tudo e de todos.

O volume aumenta, o álcool também e de um instante para o outro me imagino dentro de um lugar ainda mais escuro com clareiras espaçadas e nesta escuridão o brilho dos olhos de todos me observam e se observam entre si. É uma caçada e as regras do jogo não estão muito claras. O que importa então é decidir como reagir a tudo o que acontece a minha volta. As luzes brilham caleidoscópicas e atordoam qualquer tipo de reação que mencione a saída dali. Todos dançam, riem, falam alto, tiram fotos que vão precisar de edição no outro dia.

A única coisa que consigo pensar em meio a todo o barulho é que as coisas que são feitas dentro de lugares onde as luzes piscam fortes, mas não nos transcendem, onde a música é alta, mas não nos desperta e nem inspira, só tem como ser feitas à noite, pois a noite liberta tudo o que o dia, com seu ar sério e trabalhador, não concebe de ser liberto.


segunda-feira, 7 de abril de 2014

Epifania

Me deparei com a minha consciência, hoje às seis e quinze. 

Ela assim como veio, foi: apressada como todos os outros que fluíam pelas ruas em direção (ou na direção contrária) de suas vidas. Apesar de não tê-la visto, ela me viu e atravessou a rua após me achar meio sem rumo, num passo automatizado.

Senti a estranheza do entardecer abafado e, ao mesmo tempo, aliviante e claustrofóbico. Imediatamente notei que faltava algo ao redor: O perfume que rodeia os dias. Por onde será que anda? Que ventos o levaram? Quantas balsas serão necessárias até que ele possa ser encontrado outra vez?


Pensei então que o aroma da vida pode ser somente uma questão de visão.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Para a amiga

Qual a valia de cobrir o amor com o véu da amizade se mesmo e na verdade se está é jogando água dentro do rio?

Ser direta, forte, imóvel como pedra cravada no campo não é mais do que deixar de ver toda a paisagem que há no distante.

Amiga, não há jogo jogado, dança já dançada ou frase já dita. Qualquer destas artes é feita da ferida, do riso e do silêncio. Tudo sem improviso.

Não decrete assim por decretar o que é e o que não, pois o caminho nos torna cegos do brilho e da ilusão do que um dia foi estrela e tal como o brilho delas, existe só num tempo que passou.

Amiga, me dê a tua mão.

Amiga, seja amiga, bendita, maldita, espera aflita que acaba num sorriso claro como a folha que te clama.