quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Aqui não existe saudade

Era uma vez um vilarejo onde ninguém sentia saudade. Não se engane ou sinta pena, pois este lugar era como qualquer outro e não havia graves problemas. Tudo era completamente igual a todo lugar que você conhece, as pessoas riam, brincavam, comiam, dormiam, se encontravam e de todo modo, viviam, mas não de um jeito intenso ou como se não houvesse amanhã, porque em histórias fabuladas ninguém faz isto. Viviam normalmente.

Quando havia graça a alegria se fazia presente nos lábios e corações, quando esta se ausentava a tristeza tomava conta e isso apesar de triste não trazia surpresa alguma. No lugar era comum a hospitalidade e todos recebiam muito bem todo e qualquer forasteiro que chegasse buscando comida ou abrigo fosse pelo tempo que fosse.

Quem vinha de fora se sentia realmente acolhido, pois sempre havia a quem ouvir sobre as antigas histórias do lugarejo, sobre os costumes locais e sobre as caravanas que passavam ou sobre o circo que por vezes animava a crianças e anciãos. Porém, se perguntados quando gostariam que um destes eventos que tiravam todos de suas rotinas voltasse, diziam:

— Não sabemos dizer. Se um dia voltar, tudo bem.

O mesmo acontecia com as pessoas há muitas décadas. Casais que se gostavam conseguiam ficar dias sem contato, mensagem ou mesmo procura pessoal porque não tinham saudade. Os comentários nas cidadelas vizinhas era que uma maldição tinha sido jogada naquele lugar por uma moça de coração partido. Não se sabia ao certo. A certeza era que tudo acontecia movido mais pela necessidade do que pela vontade saudosa.

E todos viveram de certa forma indiferentes para sempre.

  

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Copas



A sala é pequena assim como toda a casa e na falta de mais alguém para que o tempo passe mais rápido, ela deita as lâminas do baralho uma a uma em ordem decrescente em cima da mesa onde há somente um cigarro aceso e um cinzeiro como companhias enquanto o relógio na parede insiste em resmungar um tique-taque incessante. Nenhum dos três liga para qualquer som externo.

Pensou em colocar algo para tocar, porém, a cada carta que a mulher pegava em suas mãos, trazia à tona alguma lembrança e nenhuma delas seria recordada ou esquecida se  outra carta não fosse posta junto as outras. Já tinham se passado duas horas.


A infância na casa ampla e ensolarada, o convívio com as irmãs, as brincadeiras de menina e os aromas e sabores que marcaram a criança que um dia foi, tudo estampado  no Ás de Ouro que trouxe consigo a juventude, os primeiros amores, os tantos desamores, os excessos e descobertas de um Cinco de Copas que a perturbou, pois as memórias eram muitas e desencontradas.

A decadência da família, antes dona de boa parte dos negócios da cidade, as primeiras dificuldades financeiras, a separação dos pais, o casamento das irmãs e a dissolução rápida de seu mundo mostrado em cartas de Espadas como se fosse um espelho que salienta todas as rugas e marcas de expressão que a mulher nunca gostou de ver.

Após isso, a vida que não foi nem boa demais nem insuportavelmente tirana, apenas morna como um café que se esquece de beber a tempo. Foi acostumando a querer que nada ficasse pior e que tudo se estabilizasse nas cartas do naipe de Paus.

Levantou da mesa e abriu a janela que mirava toda a parte baixa da cidade. As luzes começavam a se acender enquanto a claridade morria suavemente. Ela olhava a vista de dentro de si e deixava a cidade vê-la na esperança de que algo extraordinário pudesse acontecer e é nesta hora que a campainha toca e as mesmas malas que um dia deixaram a sala que ficou vazia, decidiram trazer alguma companhia de volta.

Sem oferecer resistência ou questionamento algum, ela guardou o baralho.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Na exposição

Ele olha para o quadro na parede e não entende nada, mas olha para sua interlocutora e sorri com um jeito de quem reconhece perfeitamente o que vê mais uma vez com um ar quase entediado. Não queria estar ali, preferia algo com mais música, mais bebida e menos gente blasé. Aceitou o convite para a exposição porque costumava aceitar quase tudo o que vinha de seus amigos.

“Não é demais? Toda a expressividade que este artista deu às cores frias e quentes neste quadro, acho que mostra muito bem o que os jovens de nossa época sentem. Toda essa angústia passivo-agressiva…”, dizia sua amiga numa análise que, com toda a certeza, devia ser apenas concordada.

Ele não via nada além de alguns rabiscos salpicados em todas as direções, algo que talvez, só talvez, uma criança de cinco anos também faria, ou quem sabe melhor.

“Ãhn…. claro! Isso mesmo!”

Ao invés da resposta que significava tudo, mas não dizia nada,  pensava na sua serie preferida do Netflix que estava perdendo. Era uma pena porque não teria tempo de vê-la por bastante tempo.

“Vamos até o terraço? Quero pegar um pouco de ar puro.”, Perguntou para ver se conseguia se salvar de mais avaliações cheias de significado.

A amiga aceitou o convite, mas antes conversou com muitos conhecidos que a pararam no meio do caminho para dizer olá ou simplesmente pedir suas opiniões e conselhos sobre outras exposições que valiam a pena na cidade. Ele não sabia até o momento como ela era influente naquele meio apesar de não pintar coisa alguma.

Enfim no terraço puderam conversar em paz e ele pôde ver as luzes da cidade longe dos quadros e de todos os entendidos, pintores, artistas e pseudo-críticos.

“Nossa… Tudo isso dá pra ver só neste quadro?”

“Claro! Não é óbvio? Se não tá vendo isso, você tem problemas”.

domingo, 8 de junho de 2014

Luz Negra

“Com licença! Com licença! ....! ....!!”

Conforme os passos iam aumentando, ia me dando conta que não era necessário e nem adiantava pedir licença para conseguir mais espaço. Àquela hora e naquelas circunstâncias a polidez é irrelevante. Melhor deixa-la pra segunda-feira.

O ar é rarefeito, mas só prestei atenção nisso agora porque é certo que tem mais gente do que quando entrei. Ao simples toque de alguns botões de computador o lugar todo parece entrar em transe, os motivos para esse transe acontecer não são os mesmos: diversão, tédio, álcool, libertação, carência, mais fotos no Facebook. Tudo pode ser um motivo e um gatilho a mais para a melodia cortar feito navalha os ouvidos e a noção de todos os que estão na pista e fazê-los esquecer de tudo e de todos.

O volume aumenta, o álcool também e de um instante para o outro me imagino dentro de um lugar ainda mais escuro com clareiras espaçadas e nesta escuridão o brilho dos olhos de todos me observam e se observam entre si. É uma caçada e as regras do jogo não estão muito claras. O que importa então é decidir como reagir a tudo o que acontece a minha volta. As luzes brilham caleidoscópicas e atordoam qualquer tipo de reação que mencione a saída dali. Todos dançam, riem, falam alto, tiram fotos que vão precisar de edição no outro dia.

A única coisa que consigo pensar em meio a todo o barulho é que as coisas que são feitas dentro de lugares onde as luzes piscam fortes, mas não nos transcendem, onde a música é alta, mas não nos desperta e nem inspira, só tem como ser feitas à noite, pois a noite liberta tudo o que o dia, com seu ar sério e trabalhador, não concebe de ser liberto.


segunda-feira, 7 de abril de 2014

Epifania

Me deparei com a minha consciência, hoje às seis e quinze. 

Ela assim como veio, foi: apressada como todos os outros que fluíam pelas ruas em direção (ou na direção contrária) de suas vidas. Apesar de não tê-la visto, ela me viu e atravessou a rua após me achar meio sem rumo, num passo automatizado.

Senti a estranheza do entardecer abafado e, ao mesmo tempo, aliviante e claustrofóbico. Imediatamente notei que faltava algo ao redor: O perfume que rodeia os dias. Por onde será que anda? Que ventos o levaram? Quantas balsas serão necessárias até que ele possa ser encontrado outra vez?


Pensei então que o aroma da vida pode ser somente uma questão de visão.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Para a amiga

Qual a valia de cobrir o amor com o véu da amizade se mesmo e na verdade se está é jogando água dentro do rio?

Ser direta, forte, imóvel como pedra cravada no campo não é mais do que deixar de ver toda a paisagem que há no distante.

Amiga, não há jogo jogado, dança já dançada ou frase já dita. Qualquer destas artes é feita da ferida, do riso e do silêncio. Tudo sem improviso.

Não decrete assim por decretar o que é e o que não, pois o caminho nos torna cegos do brilho e da ilusão do que um dia foi estrela e tal como o brilho delas, existe só num tempo que passou.

Amiga, me dê a tua mão.

Amiga, seja amiga, bendita, maldita, espera aflita que acaba num sorriso claro como a folha que te clama.


segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Obsessão

Tenho uma obsessão. E quem não?
Mania de querer
Querer ter pensamentos geniais
O tempo todo.  
Mas, calma, essa mania não é sempre que acontece.
Só quando me desce algo não sei de onde e que faz eu não desgrudar.
Da tinta que valseia na folha que abre os braços e me recebe.

De linhas abertas.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Ao mar


O vento que bate agita sua roupa e seus cabelos. Aquela noite por algum motivo parecia bem mais longa que todas as outras que tinha vivido e sobrevivido e apesar de tudo o que havia passado nada ainda era suficiente. Tudo parecia ser tão cedo mesmo que o tempo não importasse. O caminho até o cais era longo e sinuoso, cheio de curvas e golpes de vista, graças a bebedeira que o abraçou forte durante toda a madrugada, ele retribuía da mesma maneira o abraço carregando uma garrafa quase vazia debaixo do braço.

E a dança era lenta, os passos, em falso e o barulho intermitente dos carros passando em cada rua que atravessava e não notava nada. Ele confiava no senso comum que diz que o divino cuida melhor de quem não está sóbrio. Pelo menos é o que ele pensa ou pensa que pensa nisso toda vez que bebe.

O cheiro de mar misturado ao de suas roupas que rescendiam não a álcool em si, mas a cigarro e a noite, pois a noite possui um perfume inebriantemente forte que é notado por todos aqueles que nos olham depois de três madrugadas seguidas: como se ela não quisesse que você fosse de mais ninguém porque ao contrário do dia, a noite é mulher de olhos penetrantes, de cabelos escuros, vestidos provocantes e ciúme eterno de quem a procura nem que seja por uma vez.

Depois de algumas esquinas, de muitos cruzamentos e de esvaziar a garrafa que trazia consigo, ele enfim chegou ao cais puxou do bolso do casaco um guardanapo amassado, uma caneta, se apoiou no parapeito que separa a terra do mar aberto e correu o traço em versos.

Não te conheço e às vezes não sei se quero ou se necessito conhecer e reconhecer teu rosto.
Não sei falar de amor, não vou a Copacabana, não gosto de salsa, o tempero.
Por mais ridículo que seja, sei que você vai achar esta garrafa com este meu bilhete. Só te peço um favor: não se faça de rogada, venha ao meu encontro.

Colocou o bilhete dentro da garrafa vazia e a arremessou com toda a força para dentro da água. Virou de costas e foi mais uma vez para os braços de quem lhe queria como posse.


domingo, 5 de janeiro de 2014

O dia da traça


“Daqui não irás passar!”, falou com toda pompa e sequidão um guarda de lança em punho e armadura vestida, a ele não dei ouvidos e adentrei o lugar com o foco de um caçador e com agilidade tal bicho veloz das savanas do tão perto e tão longe continente africano. Eu sabia o que queria naquele momento. Logo que dentro do lugar, amplo e imponente, fui convidado a sentar à mesa com dois homens que bebiam Whisky. Segundo um deles ao erguer-me seu copo, “Bebida não é algo feito pela mão do homem, mas pelos instrumentos misteriosos e eficazes do tempo”. Decidi não beber, me pareceu pouco apropriado misturar as minhas horas de busca com álcool.

Me embrenhei por entre os imensos corredores e deles vinham sussurros, música, cantos, dança, passos, diálogos, brigas, gritos e tudo foi ficando ensurdecedor demais para se prestar atenção onde se podia pisar e quase viro cativo da música de um flautista, mas segui. Tiros de canhão, soar de sinos, risadas, lamentos, o perfume da guerra e o odor da paixão, tudo ao alcance da mão. Por fim, consegui os volumes que queria dentre as variadas formas, tamanhos, capas, títulos e estórias colocadas naquelas estantes que pareciam mais vivas até do que eu mesmo.

“Mais alguma coisa, senhor?”


“Vocês tem marca-página?”, era o que eu devia ter perguntado, mas sempre esqueço. 

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Luzindo


O fogo e o pavio viram uma chama que aos poucos vai crescendo e apontando para o céu. Criam uma ponte que ninguém vê, mas que se torna tátil por algo que também não se explica direito, que está ali e sempre esteve. É disso que é feito esse momento para o homem que vem de longe e que é humilde, para a madame que veio diretamente da aula de Pilates, para a criança que não sabe direito porque vem, mas que sabe que depois disso tudo vai ter doce e bolo na confeitaria da esquina. Cada um acende a chama para o que quer, cada um persiste nela para o que precisa.

Enquanto isso é noite escura no centro do infinito, mas não aquele tipo de escuridão que assusta, mas uma escuridão feita de um negro que cobre tudo como um manto e que traz a prata da lua cheia estampada em si. Nas ruas deste lugar não é necessário que haja asfalto, pois não existem carros nem outros tipos de automóveis somente passagens que se entrelaçam para a travessia dos que vivem neste lugar. Um homem de vestes escuras, de uma elegância antiga e olhar fixo no horizonte está à espera de algo enquanto dá baforadas num cigarro. Tudo é silencio.

O campo é repleto de árvores frutíferas, pássaros cantam alegremente a todo instante e a água corre límpida e graciosa no riacho que vai em direção ao sul de Todos os Lugares. Sentado em uma pedra que o deixava ligeiramente mais alto que os animais que vinham vê-lo atraídos pelo som, um menino de cabelos cor de cobre, braceletes de ouro e pele muito alva tocava delicadamente uma flauta também dourada. Ele parecia não se importar com o que acontecia a sua volta, somente a música que compunha sem nenhum planejamento ou preocupação. Tudo é inspiração.

E então a chama que apontava para o céu invade tudo e tudo é luz, tudo é calor. O homem de escuro ainda com olhos fixos no horizonte, ri. O menino tocador, faz mais e mais floreios em sua música.


Tudo é luz.