quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Ponto cego



Em tudo o que vemos, sempre há algo que não enxergamos ou não damos tanta atenção. Parece que não são somente os retrovisores dos carros que possuem essa capacidade ignorativa.

Passava todos os dias pelos mesmos lugares. Coisa de rotina. Via as coisas que via, sem mais. Sempre fiz mais o que precisava do que o que realmente queria. Aquela loja nunca fez parte do meu itinerário.

A rua eu já conhecia de olhos fechados. As calçadas, ladrilhos, placas de anúncio e janelas, também. A livraria era só mais uma.

Existem pessoas que passam e pessoas que ficam. Clichês à parte, eu sou desses caras que passam, muito apressados. Ser criado na cidade causou esse efeito em mim. Cafés, cigarros, jornais e muito trabalho. Um saco.

Lembro que um dia vindo do trabalho e lendo alguns anúncios no jornal enquanto caminhava esbarrei em uma moça. Fiquei bem preocupado, mas ela parecia bem. Quase não me olhou. Só fugiu. Cidade é lugar de gente esquisita mesmo!

Todos os dias vejo ele passar por volta das cinco e meia. Às vezes vestido com mais formalidade, outras não. Nunca falei com ele, mas o ver passar me faz sentir bem.

Não trabalho nessa livraria. Gosto de vir aqui porque gosto de ler e os horários da minha vinda para olhar as novidades acabam coincidindo com a hora dele cruzar a rua. Ok, eu assumo. Vou para as prateleiras da frente da livraria, perto da porta, para vê-lo mais de perto.

Outro dia, vi que precisava usar mais meus óculos da pior maneira. Estava saindo da livraria desatenta. Procurava o cartão do estacionamento. Não percebi que alguém vinha na mesma direção e em rota de colisão comigo. Só senti a batida. Estava envergonhada demais e míope demais para ver o acidente. Só depois que tinha passado, vi que era ele. Amanhã volto à livraria.

     

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Clichê


Dizem que as pedras dos caminhos estão onde estão por um propósito. Ele não pensa nisso enquanto caminha pelo calçamento que remete a um passado que ele ao ouviu a respeito. Só pensa que está muito atrasado. Entra no prédio e aperta repetidas e nervosas vezes o botão do elevador.

O atraso o fez correr. Carrega nas mãos o que há alguns minutos atrás ainda era um buquê de rosas, mas tal como as mulheres, as rosas não sobrevivem a desesperos e sobressaltos. Mesmo assim, ele ainda aposta que pode apresentar o que restou das rosas a ela.

Tocando Chico Buarque em um vinil antigo, ela passa o olhar impaciente entre a janela, o relógio e a porta enquanto mexe no cabelo. Questiona o porquê dele sempre chegar depois do horário combinado. Será que se perdeu no caminho? Será que alguém o fez se perder no trajeto?

Afoito, entra no elevador. O nó da gravata incomoda e afrouxá-lo já é quase uma questão de sobrevivência. Qual é o número do apartamento mesmo?  408? Por que esse elevador é tão lento?

Em meio às perguntas, uma mensagem de texto: “Tá tudo bem? Vai demorar?” Onde era possível ler: “Tá morto ou resolveu não vir?”

Duas batidas na porta e um som ofegante do outro lado. Agora, o olho mágico era a única coisa que os separava e que impedia o encontro e tudo o que o rodeia.

O atraso já não era importante e nem mesmo a mensagem cheia de segundas intenções. Voltaram pelo mesmo caminho e pelas pedras que estava ali para esperá-los.

A vitrola ainda tocava Chico. “

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Sala de cinema



Não venho ao cinema pelos filmes, mas pelo cheiro de pipoca. O cheiro da infância que não passa, do descompromisso, da alegria comprada.

Venho pelas luzes. Pela falta e pela presença delas.

O barulho da expectativa, do farfalhar dos sacos de bala e pipoca, o refrigerante que deve ser bebido com uma rapidez moderada para que não vire apenas gelo e água no final.

O final do filme que nem sempre é o mais esperado. Às vezes nem se presta muita atenção ao que está se passando, mas ao todo.

Cinema não foi um lugar feito para se estar concentrado, introspecto, sisudo e só.

Qualquer um que vá ver um filme e queira um ambiente assim, deve ir à igreja.

Nos falamos depois, vai começar o filme. Passa a pipoca?

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Blues



Prendi a respiração para tentar passar pelo tempo. Tentando que ele não me visse. Para o momento não passar. Queria que o tempo fosse menos onipresente.

Tento disfarçar a emoção. Por trás da cortina consigo ver as luzes do palco e o burburinho das pessoas que esperam para me ver.

A banda está a postos atrás de mim. Todos confiam no meu trabalho, até demais.

Não sei por que coloquei esse terno. É verão e faz um calor incomum para este lugar   

É meu show de estréia e um nervosismo começa a tomar conta de mim. Espero conseguir tocar essas malditas cordas direito.

“E com vocês, a revelação da música do Mississipi...”. Assim fui anunciado enquanto as cortinas enfim, se abriam.

Chamou a minha atenção não o salão cheio, mas apenas um lugar vazio. Uma cadeira aveludada encostada ao lado de uma mesa redonda, pequena, com uma longa toalha de veludo vermelho. Em cima dela, pratos, talheres e copos vazios. Assim como também estava vazia a minha caixa de e-mails e a secretária eletrônica.

O calor se transformou rapidamente em frio na barriga. Quis largar tudo e beber uma boa dose da bebida mais forte do bar.  

Mas já era hora de esquecer tudo. Olhei para o lado e o meu empresário estava com uma cara que parecia me perguntar porque eu ainda não estava tocando.

Já era hora. Pois ninguém sai disso tudo sem cantar um bom de um blues.

Juízo



Põe juízo em mim, porque o mundo não tem mais jeito.

Derruba essa parede, não é preciso nenhum mundo perfeito.

Qualquer encontro, mesmo que casual, muda o trecho, o rumo e o jeito. Ainda que não seja sempre, porque sempre é sempre muito tempo.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Diário de bordo


O balanço do navio não me afeta mais. Já estou nisso há tempo suficiente para conseguir controlar as reviravoltas do meu estômago. O mesmo não acontece com o garoto que tenta dormir na cama ao lado da minha. Esses novatos...

Estamos em pleno mar.... Não. Isso é cópia barata de frase dos outros, mas não imagino outro jeito de começar a escrever.

Nasci pobre, em uma cidade onde mar era uma palavra quase tão distante quanto ele próprio. Uma cidade onde quase não chovia. Uma cidade onde o sol banhava tudo quase todo o tempo. O clima era quente. Tão quente quanto os ânimos das famílias que viviam em guerra pelo domínio do território e das plantações.

Sobrava terra, mas faltava espaço para mim que pensava muito em conhecer o mundo, ou o que desse para conhecer dele. Cresci. Perdi o pouco de família que ainda me restava e com isso, resolvi soltar minhas amarras daquele lugar seco.

A primeira viagem de toda a minha vida foi ao litoral. Lá conheci um velho de barba rala, pele queimada e marcada “pelo vento e pela solidão que vem da maresia”, segundo ele mesmo gostava de repetir num tom teatral. Chamava-se Salomão. Tinha um barco e muitos amigos.

Logo virei um deles e a convite do próprio Salomão virei tripulante do barco sob promessas de “viajar pelo mundo”, “ver a natureza e interagir com ela”, “experimentar comidas exóticas” e “conhecer novas pessoas”. 

Confesso que achei tudo muito tentador na época. Isso há cinco anos.

Hoje, quando lembro as frases dele e dos seus amigos vejo: comida ruim, tempestades em alto mar, alguns lugares que nem são tão bons assim, prostitutas feias e homens bêbados. É a vida, mas não tenho tanto do que reclamar. Coleciono belas vistas, amores, desamores e dinheiro que pegamos de barcos abandonados. Boa parte disso a serviço “De La Reina”, a liberdade.    

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Descansa (Rima Feita)


Vê se dorme, descansa.
Faz de conta que ainda és criança.
Deixa de choro e entra na dança.
Que a vida é cheia de contra-dança.
E vê se não te cansa.
Pensa na bonança. 
E descansa.

Mania


Roberta possui uma estranha mania. Desde pequena lê os livros do fim para o começo. Não importa qual seja a estória. Grande ou pequena, com figuras ou não. Seus pais tentaram inúmeras vezes reprimi-la e explicar que não se lia livros daquela maneira, que o normal era ler os livros virando as páginas da direita para a esquerda.

Toda vez que é questionada sobre o porquê, a menina não hesita.

- Não gosto de finais. Então acabo logo com eles para que tudo seja início e eu tenha a impressão que as coisas estão apenas começando e que sempre há novas chances. 

Coragem



Ela passa todo dia por aqui. Eu só posso ficar olhando, pois não tenho como sair. Coisas do trabalho. E de qualquer maneira, demoraria muito até eu pegar o elevador,   descer esses 15 andares, vencer a minha timidez e alcançá-la só pra dizer um mísero “oi”. Acho isso arriscado e cansativo demais. Nessas horas eu gostaria de poder entrar no pensamento das pessoas. Seria muito útil.

Vestido florido, bolsa a tiracolo, cabelos crespos, daqui, pelo menos, parece que são. Nesse momento penso “Nunca acredite nas crespas, elas não tem coração.”, acho que um amigo me falou um dia. Deve ser despeito dele ou algum tipo de tentativa de fazer filosofia barata. Daqui de cima ela nem parece tão má assim.

Ela deve se chamar Rute. Não, muito nova para esse nome. Então certamente se chama Brenda. Isso! Tem cara e jeito de Brenda.

Brenda passa duas vezes por dia nessa rua. Deve ser na ida e na volta do trabalho. Ela deve ter família grande, é, tem sim. Daquelas que se reúne todo final de semana e faz bagunça. Tem um avô que gosta de ouvir jogos de futebol com o rádio colado no ouvido. Uma avó que é um doce e que faz tricô super bem. É filha única, mas tem muitos primos.

Meus colegas do setor já acham graça e me avisam quando o relógio bate perto das quatro, para eu ir para a janela e a piada ser mais completa.

Vou criar coragem e ir falar com ela. Semana que vem eu vou. Juro.


Dança insone



Toda vez que a cabeça fica pequena demais ou a cama grande demais, sou expulso para fora do sono.

É um despejo da tranqüilidade. Um degredo para fora da paz.

Abro a porta da geladeira e é inútil. Pois nada lá dentro me ajudará a pegar no sono.

Olho pela janela e está escuro. A rua, apesar de me chamar para os seus braços, não me confortará mais que alguns minutos.

E a caminhada é longa, mesmo que seja em círculos. O ponteiro do relógio corre lento. Tudo parece ser demais para esperar. Até mesmo o dia que vem.

Tudo enegrece. Até minha boca que sorve um café, mais por costume automático que por vontade.

E o resto é música e silêncio. É lençol desarrumado. É vento quente e, de repente, a chuva cai lá fora, da nuvem que não chove em mim.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Problema de timing


Tenho um problema sério com relógios. Mas nem sempre foi assim. De uns tempos para cá, nunca mais consegui ajustá-los na hora certa. 

Amigos meus já tentaram, família, desconhecidos e de nada adianta.

Decidi não usar mais relógios, nem checar mais a hora. Nunca existe uma hora certa para as coisas e, se ela existe, acabamos na maior parte do tempo deixando passar pensando em quando ela irá chegar.

De repente, estou sobressaltado de novo.... 

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Na chuva


Sinto um sobressalto que pula de dentro do meu peito, como se tivesse saído de um carro em alta velocidade. Sensação de sair de um túnel muito escuro e, de repente, vir para a claridade intensa.

É o que sinto toda vez que o meu despertador toca pela manhã. Quanto a isso, não há o que ser feito. Já comprei vários relógios diferentes, com toques diferentes, mas o trinado do despertador me desconcerta.

Já nem me dou mais ao trabalho de olhar para o lado. Apenas saio da cama sentindo a dormência que reclama mais alguns minutos de sono tranquilo, mas não dá mais. Preciso sair.

Água no rosto, escovas de dente... preciso jogar essa antiga fora. Toalha, chuveiro, roupa, café amargo demais, jornal, chaves de casa, porta da rua, muita chuva.

Ao olhar para a porta lembro que não tenho um guarda-chuva no momento e que não irei conseguir um antes de chegar perto do trabalho, ou seja, é inútil insistir tentando ficar seco.

Quatro quadras. Essa foi a distância exata que caminhei, já ensopado, até sentir que a chuva tinha parado de súbito. Não tinha notado a sombra por sobre minha cabeça. Era um guarda-chuva aberto e uma desconhecida ao lado.

A carona apesar de um pouco tardia, foi oportuna. Porque tinha certeza que alguns dias depois tudo aquilo iria me levar para a cama. O que realmente aconteceu. Foram dois dias quentes e inesquecíveis na companhia da gripe e da febre. 

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Zé e o samba



O dedilhar do violão do Zé rompe o silêncio desse lugar e até entretém quem está aqui por jogo, diversão ou bebedeira.

Ele não é pago por isso, nem pretende, pois acha que a música não deve virar moeda de troca. Ela é livre, feito os pássaros que vêm pousar sobre os barracos do morro.

Livre como todos que vivem aqui querem ser. Livre que nem a Vanessa, a cabrocha que sambou em cima do coração dele, e que se livrou bonito, mas isso é outra história.

O sonho do Zé era conseguir fazer um samba de sucesso. Um samba que ficasse na memória das pessoas pra mesmo depois que ele já tivesse passado dessa pra uma melhor. Com uma letra fácil, mas bela e uma melodia que ficasse na cabeça e no coração de todos.

Ele sonhava em ser o próximo Cartola.

Não tinha muitas ambições, além disso. Carros, casas, luxo, nada disso. Queria somente a fama e o reconhecimento.

Em um final de tarde, voltando para o barraco onde morava com a mãe, já idosa, Zé deu de cara com um homem bem vestido e que tinha um ar de importância quase exacerbada. Esse homem assim que o viu lhe estendeu a mão.

- E você... É o homem que tenta fazer o samba da sua vida, não é?

Zé, mesmo sem ter frequentado a escola durante boa parte da vida, viu que aquele homem tinha algo por trás daquele sorriso simpático e do paletó de fino tecido.

- É, meu senhor, eu busco fazer música boa. Só isso.

- Pois então hoje é o nosso dia de sorte. Eu estou aqui para te ajudar, meu rapaz.]

- Como é que o senhor vai poder me ajudar. Que eu saiba um samba só se pode fazer com duas coisas: Com muito amor ou com muita dor.

- Vou te ajudar te dando essa caneta, Zé. Ela vai te dar tudo o que você precisa pra conseguir o que quer. 

Só o que você precisa fazer é escrever com ela, sempre. E vai ver como essa tua inspiração não depende só disso.

Por via das dúvidas, Zé começou a usar a tal caneta, que não era diferente de outras canetas. Tinta preta, cano transparente, tampa. Nada demais. Toda vez que uma ideia vinha na sua cabeça, ele até pensava em pegar qualquer lápis que estava ali à mão, mas só a caneta do desconhecido fazia as suas ideias fluírem.
E então, numa noite quente em que os grilos faziam um coral lá no Morro da Solidão, eis que o compositor ganhou na insistência. Saíram assim, feito água clara de beber, esses versos:

A batida do meu tantã/Faz o povo dançar
Ninguém pensa no amanhã/ Quando ouve o meu canto ecoar
Lalalaiá/Lalaiá/Laiááá

Foi a maior alegria da vida dele. Pois sentiu que estava diante dos olhos dele, naquela folha de papel de pão, a música que iria abrir as portas para o seu sucesso, para o seu reconhecimento.

E o Zé, realmente foi reconhecido. Gravou seu samba, fez shows por todo lado e até mesmo a Vanessa, arrependida, comprou o seu CD e foi pra primeira fila aos gritos de “Meu Poeta!”, ver se conseguia o amor dele de volta.

Assim que a tinta da caneta acabou, o Zé não conseguiu fazer outro samba tão bom. O homem nunca mais deu as caras pelo morro. Atordoado pelo fim do seu sucesso, Zé não aguentou e virou notícia no fundo da Lagoa do Mel.

Ainda tinha dinheiro, mas queria o calor das luzes do palco.

Mas o seu samba ficou ainda, no canto do povo e das rodas de samba.


quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Composição


Invento, tento, sento e espero que apareçam mais letras, mais ideias e mais sentido.

Se deve seguir sempre o ritmo da vida, o compasso do mundo. Pra que seja composta a mais bela canção que se consiga fazer. Não pra tocar no rádio, mas pra tocar no fundo de quem a queira ouvir.

Pra ser o remédio e nunca a dor.

Pra que ela seja, ao mesmo tempo, marreta, pedra e flor. 

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

?



O que te faz poeta?

O número de versos que consegues fazer?

A quantidade de musas que arrastas pelas multidões?

Ou a solidão das praças e calçadas da cidade, que dorme enquanto ardes?

Teu Eu-lírico já virou Nós há tempos.

Teus métodos, nem tão metódicos assim.

O que te faz, poeta?

A tua estante cheia de livros?

Teus rabiscos cheios de rimas feitas?

Ou teus cadernos repletos de ti mesmo?

Que tua poesia conta? Que mensagem passa?

E quem por ela passa? E para?

Tempo


Sinto o sol tímido da manhã bater em meu rosto. Acordei cedo e nem estou atrasado para o trabalho, o que é um milagre.

Sinto que ainda tenho tempo de tomar um café razoavelmente sossegado.

Entro no bar de paredes e piso brancos. O cheiro de fritura me faz lembrar de tudo o que ainda preciso fazer até às seis da tarde. Mas melhor não pensar nisso agora. Preciso de uma xícara ou duas de café antes de encarar tudo isso.

Todas as mesas do bar têm tampo de vidro. Provavelmente são assim para facilitar a limpeza.

Para economizar tempo.

Abro o jornal. Nele estão algumas notícias requentadas. Estamos numa época do ano, ou da vida, em que nada parece ser realmente novo. Olho as fotos com atenção. Talvez nelas eu entenda boa parte da notícia e assim não precise ler. Sim, sou um leitor de meia-tigela!

Olho para o relógio. Ainda me resta algum tempo. Resolvo pedir o café a garçonete de olheiras marcantes. 
Olheiras de quem tem um mundo nas costas e que já não liga direito para o que faz.  

Talvez ela nem tenha tempo de ver a família, ou não teve tempo de formar e cultivar uma...

Ou eu mesmo esteja com tempo de sobra pensando nisso tudo.

O café está melancolicamente ruim. Não quero perder mais meu tempo aqui.

Não há mais tempo pra isso. 

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

O bloco


Mesmo após anos de muito sacrifício e desfiles, Seu Joca não perdia uma saída do seu “bloco de estimação”, como ele mesmo gostava de brincar quando se referia ao “Seresteiros”, que só não virou grupo carnavalesco porque o pessoal do bairro ao lado resolveu fazer sua própria escola, nutrindo um sentimento de competição entre o bloco e a escola de samba.

Isso foi há algum tempo. Seu Joca nem usava bengala ainda. Para ele, isso foi um divisor de águas importante em sua vida, um dos vários que ele carrega em sua memória.

O primeiro emprego que teve, como ajudante do leiteiro, seu casamento e sua separação alguns anos depois, seus filhos, que vieram depois da separação, mas são todos dele. Em sua cabeça, nunca houve espaço para a dúvida quanto à isso. Seu Joca era um homem de coração grande e mole.

Ainda tinha a mesma sensação de quando era mais jovem quando estava junto do Seresteiros. As dores naturais que o tempo traz passavam e só importava o toque dos bumbos, chocalhos e metais e o canto do povo.

Joca tinha um par de sapatos especiais pros dias de carnaval. Bicolores, que ficavam em uma caixa separada dos calçados usados nos dias comuns e retirados dela com extremo cuidado quando necessário.

No meio do bloco, daquela multidão em êxtase, Seu Joca sentiu que tudo era pleno, a alegria era plena e que todos os desgostos da vida eram irrelevantes se comparados aos risos daquela gente. Mesmo ele, se sentia jovem e forte outra vez. Esqueceu a bengala e foi saindo, saindo...

Sempre sambando.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Pose


- Isso! Boa! Olha pro outro lado agora. Ajeita o cabelo! Sorrindo, sorrindo. Perfeito. Tá ótimo por hoje. Até amanhã, querida.

Quando eu era chamado pra fotografar, assim, de brincadeira, nos aniversários, nem imaginava que o meu sustento ia sair disso.

Os olhos do fotógrafo devem ser mais atentos que os das pessoas comuns, pois tudo acontece a nossa volta o tempo todo. Todos deveriam notar tudo de interessante que acontece. Nem todos têm tempo ou vontade.

Ao entardecer a cidade fica muito mais iluminada. É quando saio pra clicar o que realmente gosto. Não somente o que é belo, mas tudo o que é vivo.

As dores, o sofrimento, os risos infantis, a multidão, a pressa. Nada disso pode ser registrado em um estúdio ou no rosto e nas poses fabricadas de uma adolescente precoce que sonha com uma vida em Milão.

Paro em frente a um café, vejo o homem sozinho com um livro aberto,  a menina acompanhada de um sorriso torpe, o músico que toca uma música alegre demais para aquele ambiente. Todos ligados demais nas suas próprias existências e de menos na música em si.

Isso vale uma foto.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Pierrô


-Fechem os salões! Guardem os confetes e a serpentina! Não há motivo algum para carnaval.

- Peraí, seu moço. Como vão ficar a Colombina e o Arlequim?

- Deixa eles se arranjarem pra lá. Não deixem instrumento algum tocar! Tá acabado!

- Só porque a marcação do teu coração não quer mais marcar, não quer dizer que todo mundo deve ficar marcando-passo. O baile tem que continuar.

Só porque estás com a tua aba descosturada, não significa que não possas ir e vir, seu moço. Essa lágrima tem que ser só de tinta. Da mesma tinta que pinta os caminhos do mundo novo.

Deixa os surdos tocarem, os couros repicarem e deixa darem voltas e mais voltas no salão. Que aí verás que de Pierrô, te tornarás novo folião, de novo.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Papo de bar


Numa sexta-feira pra lá de comum, Jonas se dirigiu ao bar do Maneco, o botequim mais aconchegante (e mais limpo) da cidade. Fazia isso com mais frequência do que ia à Igreja porque, segundo ele, no dia em que servissem chopp na Igreja, ele largaria de imediato as dependências do Maneco's e se tornaria o cara mais assíduo da missa.

Chegando lá encontrou o Nelson, amigo de infância, adolescência e cúmplice das suas crises. Após abraços e tapinhas nas costas, os dois sentaram e, do nada, o Nelson caiu no choro.

"Que isso, rapaz? Que tá havendo?" - Diz o Jonas que até esqueceu de pedir o primeiro copo ao garçom.

"É muita coisa, cara! Tá tudo errado"- Afirmou o Nelson, com as mãos no rosto.

Esse choro devia ter nome: Bibi. Com certeza era por causa dela que ele tinha desabado.

"O que a Bibi aprontou dessa vez, Nelson?"

"Não é nada com ela. Até tem a ver...(sempre tinha). Eu queria dar um presente legal de aniversário pra Bibi. Uma coisa, sei lá, especial. Uma vez ela me disse que nunca tinha visto o mar. Resolvi conseguir um carro com um conhecido que aluga carros e levar ela à praia.

"E..."

"Roubaram o carro. Agora esse meu conhecido quer que eu pague pelo roubo."

"Mas isso é loucura!"

"Eu sei, mas ele disse que não tem outra solução e que se eu não pagar ele vai pôr uns caras na minha cola. Jonas, eu tô ferrado, meu!"

"Calma, Nelson. Vamo dá um jeito nisso. Vamo pra polícia e daí a gente..."

"Não, polícia, não!"

Jonas estranhou a reação do amigo e perguntou o porquê da recusa. Foi quando ouviu algo que o estremeceu.

"Cara, eu sou procurado pela justiça. Mas, pelamor, não vai me contar isso pra ninguém."

"Como assim procurado? Tu matou alguém? Tu nunca foi disso! Te conheço desde que éramos crianças." - Sussurrou Jonas.

A justificativa de Nelson foi tragicômica.

"Lembra da época que tu viajou a trabalho? Eu também viajei. Fui seguir o meu sonho. Nunca contei pra ninguém, mas eu sempre quis ser mágico. Comprei vários kits caseiros, vi muitos tutoriais na Internet durante os intervalos do trabalho e numa dessas convenções de ilusionismo conheci a Bibi, que era assistente dum mágico uruguaio, o 'El misterioso'. Me apaixonei por ela assim que a vi. O jeito que a Bibi serrava aquelas caixas no número de separação de corpos me deixava louco. Aprendi um pouco, fiz uma proposta dela trabalhar comigo e seguimos Brasil afora com o meu próprio show. Foi aí que os problemas começaram. Iniciamos com shows pequenos, aniversários e festinhas de escola. As mágicas não funcionavam. Eu me atrapalhava todo. As pessoas me vaiavam e os donos das festas queriam a devolução da grana. Como a gente não devolvia porque não tinha como, eles me processavam. Por isso não posso nem pisar numa delegacia."

Naquele ponto da história, Jonas já tinha tomado o seu terceiro chopp e comido uma meia dúzia de ovos de codorna. Claro, que estarrecido com tudo aquilo.

"Cara, que coisa! Mas se a gente não pode denunciar o roubo e o dono da locadora de automóveis pra ninguém, o quê vamos fazer?"

Foi então que Nelson teve a ideia de sua redenção. Treinou muito, comprou roupas novas, conseguiu equipamentos, um salão e fez o show que valia a sua vida. Foi muito aplaudido por todos os frequentadores do Maneco's. Pagou a dívida e levou Bibi para ver o mar. Sem truques.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Folha em branco


Há semanas olho para o meu bloco de notas, computador, canetas, papel, televisão, copos cheios, vazios, saco cheio...

Não escrevo quando quero, sou escrito. Tenho prazos, planilhas, documentos pra preencher e, nada. não há o que escrever.

O que as pessoas não entendem, e muito menos a editora que publica meus textos também não, é que nem sempre há o que contar.

Aí acabo juntando o que dá aqui e, pronto! Mando o que eles querem.

Olho pela janela do meu prédio e vejo as luzes. Tão artificiais, tão necessárias.

Mesmo assim, a criatividade resolve não aparecer. Ela me diz: "Hoje não, amigo. Se vira aí sem mim".

Vejo o menino que brinca na praça logo abaixo da minha sacada. Garanto que até mesmo ele deve ter algo pra contar.

Um cigarro, dois.

Uma hora, duas, mais de três.

Resolvo deixar tudo isso pra depois. Enquanto isso, talvez a criança tenha mais sorte do que eu ao contar para a mãe por que chegou encharcado em casa.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Termo de adesão

Venho por meio desta lhe informar que você foi a minha escolhida.

Espero que também eu seja o teu escolhido. Caso contrário, certamente teremos alguns problemas. O que não é legal.

Sou uma pessoa sonhadora, no geral. Assim como todo mundo. Quero muito, nem sempre consigo tudo o que quero. Ainda assim, não deixo nunca de tentar.

Espero realmente que você se pareça bem mais com um domingo de carnaval do que com uma segunda-feira nublada. E que seja assim na maior parte do tempo.

Me inspire e respire alegria. Preciso comer mais sorvete e menos pratos de sopa quente...

Tenho sonhos, planos, anseios, mas dificilmente 'jogarei' toda essa expectativa em cima de você. Planos avulsos são diferentes de planos a dois. Creio que tudo virá ao natural, quando tiver de ser.

Vou te respeitar, valorizar e todo o resto. Imediatamente. Quando sentir q isso não é uma mão única. Esse cara vai ser eu, mas um eu do meu jeito.

Fotos, passeios, presentes e alguns textos especiais estão inclusos no pacote, se você for uma leitora (espero que sim, senão, volte ao primeiro parágrafo).

Por favor, não sinta ciúmes além da normalidade que eu também tentarei não sentir.

Não irei te soterrar com o meu passado. Saberás tudo de mim.

Sou um bom professor, um jornalista em evolução e um escritor nas horas vagas, não mais do que razoável (a modéstia me impede). Cozinho bem, mas isso não te impedirá de fazer uns miojos pra gente em alguns sábados à noite.

Vamos tentar, por favor, nunca fazer faltar inspiração e carinho, mesmo quando faltar grana...

Se arrume, se enfeite, me mostre que você é tudo o que eu precisava e não sabia. Que eu estarei sempre pronto pra te acompanhar onde quer que seja.

Trago o meu aprendizado, erros e acertos pra somar com os teus. Para serem, inevitavelmente, repetidos ou não contigo...

Topa?

Obs.: Se está de acordo com todos esses termos, assine a linha abaixo.
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De saída

Saio pela porta, furtivo...
Não deixo razão, nem aceito os motivos
Te vejo de longe, de costas para o meu presente.
Com os olhos mirando um futuro cheio do que não sou eu. Um futuro vazio de mim
Fotos mortas, palavras soltas, silêncio débil
Sem música preferida ou bilhete pra despedida
Sem flores ou beijo ardente
Somente a saída...

Superstição


A primeira coisa que faço quando fico nervoso é pegar a moeda que carrego comigo. Ganhei ela do meu avô e consigo quase que ouvir a voz dele e o que ele disse quando me deu.

“As coisas nunca ficarão ruins enquanto tiver essa moeda com você. Ela pertenceu ao meu bisavô e o livrou de ser atingido em meio de um tiroteio num bar. Guarda contigo”.

Guardei. Antes, porque achava legal ter aquele “artefato”. Era menino e todo menino sonha em ser super-herói, invencível e indestrutível. Aquilo era como se fosse o meu amuleto de super-poderes.

Depois de grande, guardava a moeda “pelo sim, pelo não”. Eu já não tinha toda essa ilusão, pois a minha criança interior tinha sido substituída por uma vida de adulto com uma agenda intensa e desinteressante.

Foi só do que lembrei quando, por engano, entrei naquela rua mal iluminada. Maldita hora que resolvi buscar biscoitos àquela hora da noite. Meus filhos podiam muito bem aguentar umas doze horas sem os tais biscoitos. É tudo culpa minha mesmo que os mimei tanto assim. Podia ter saído de carro, mas resolvi dar uma caminhada pra espantar meu sedentarismo. Má hora pra isso.

O mercado ficava a duas quadras adiante. Eu podia ter ficado na minha cama. Lá tinha a mulher que escolhi, na cama que quis. Acho que não é bem assim o poema, nem nada. Dava pra sentir o silêncio no ar. Ele era quase sólido.

Eu os vi de longe e já não dava mais pra voltar. Eram dois e a lógica natural das coisas me dizia que àquela hora eles não estavam fazendo o mesmo que eu. Estavam parados numa esquina. Um era mais alto do que o outro e eles também já tinham me visto.

Resolvi agir naturalmente. Tirei do bolso do casaco o maço de cigarros e o isqueiro, mas pra minha infelicidade o isqueiro não tinha gás. Ao ver aquilo os homens vieram em minha direção.

O mais engraçado de tudo é que eu ainda pensava nos biscoitos, mas o assalto seria inevitável. A rua além de mal iluminada era fria e as casas estavam todas fechadas. Eu estava perdido.

Pensei em muita coisa enquanto os via chegando. Eles se entreolharam e disseram:

“A gente tá vendo que tu não tem fogo. Quer um isqueiro emprestado?”, disse o homem mais baixo, que usava um capuz e uma roupa escura. Disse aquelas palavras num tom de deboche.

“Ando tentando parar com isso, cara”. Respondi.

Eles riram e disseram “Então, tá. Deixa o cigarro pra nós. Aproveita e deixa a grana também e esse casaco”.  Já tentando arrancar o meu casaco. Naquela hora não pensei. Sei que é uma loucura, mas resolvi correr.

Sentia que a cada passada que dava eu perdia um pouco dos anos que ainda me restavam. Eu devia ter sido um aluno melhor nas aulas de ginástica. Os caras, por sua vez, pareciam estar acostumados com aquele ritmo, o que era um pouco óbvio se for pensar agora.

Nessa hora descobri que não sei controlar direito a minha respiração. A rua parecia cada vez mais escura e os caras cada vez mais perto. Lembrei da moeda. Era a hora dela me mostrar que servia pra alguma coisa. 

Quando a tirei do bolso lembrei do meu avô e das palavras. Pensei como nunca havia pensado antes em como salvar a minha pele.

Não havia nada aberto, só o maldito mercado há ainda meia quadra. Eu sabia que não podia chegar lá. Não tinha mais saúde pra isso. Os muros altos não me deixariam pular em pátio algum. Só me restava a corrida e a moeda que eu agarrava com força na minha mão direita.

De repente, ouvi um estampido. Apenas um, que rompeu o silêncio daquela rua e as passadas que estávamos dando no asfalto. Eu, como a caça. Eles, os caçadores da minha paz e da minha segurança.

Olhei para trás. Os dois homens estavam caídos no chão. Parei. Olhei para os lados, ainda assustado e ofegante. Não havia mais nada, nem mesmo o perigo, só o silêncio profundo da noite.

Se foi a moeda ou se havia alguém à espreita eu nunca vou saber. Só o que sei é que naquela noite, e em muitas outras, desisti de comprar biscoitos.