terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Adão


A certeza de um dia sem surpresas foi o que motivou Lúcio a levantar da cama naquela sexta-feira, afinal, faltava só mais um dia para o final da semana e tudo estava planejado para que o sábado e o domingo fossem intensos (que o diga o número de telefone dentro do bolso de seu casaco). De súbito percorreu o percurso Chuveiro-Toalha-Cafeteira-Café-Pão-Geleia-Bolsa-Chave da casa-Porta-Portão-Rua, com um vigor digno de um atleta que corre a São Silvestre. Encarou sem nenhum contragosto a parada de ônibus e os 20 minutos que levaram para o coletivo aparecer. Entrou e logo conseguiu um assento ao lado de um senhor. Camisa social branca, calça de linho, talvez trabalhasse no comércio ou fosse algum tipo de pastor.

“Desculpa, senhor, tem horas?”, perguntou timidamente o rapaz.

“São quinze para as oito, menino. E pode me chamar de Adão.”, disse o homem.

Ele ainda estava no horário. Aquele dia seria bom, o trabalho passaria rápido e logo ele estaria sentado em algum bar, tomando um chopp e talvez conseguindo levar a dona do número de telefone (aquele do bolso do casaco) para casa ou para mais um encontro. Nosso Don Juan era daqueles caras trabalhadores, dos muitos que existem por aí. Tinha um emprego modesto, mas conseguia pagar as suas contas e ainda economizar um pouco para os tempos “imprevisíveis” como ele mesmo gostava de classificar.

Lúcio empilhava títulos de Empregado do Mês na Farmácia Central, a mais conhecida de sua cidade. Começou a jornada empolgado. “Bom dia, meu rapaz.”, disse um senhor já de bastante idade e de voz frágil, “Eu preciso daqueles remédios para gripe, sabe? Tem feito muitas friagens nesses dias, nóssinhora!”

“Eu tenho aqui cápsulas de Resfedina. Elas são muito boas para prevenir esses resfriados. O senhor vai querer estas? Sim, elas são baratas. São 2 reais a cartela com quatro cápsulas. Ok, então, eu só preciso saber o seu nome para colocar aqui no pedido.”

“Meu nome é Adão de Souza.”

Lúcio fez uma expressão de estranhamento. Já era a segunda vez em menos de uma hora e meia que ele interagia com duas pessoas que tinham o mesmo nome. Quais eram as chances daquilo acontecer? E quantas pessoas estariam passando pela mesma coisa ou já tiveram passado por aquilo. O atendente logo esqueceu do ocorrido, pois o fluxo de clientes na farmácia estava intenso naquela manhã.  

Saindo do trabalho ao final da tarde caminhando pela calçada, ele passou por um policial militar. O agente passou tão perto dele que foi possível notar a sua identificação: “Adão”, estava escrito. Aquilo estava esquisito, mas pior era o frio que fazia naquela tarde-noite, então Lúcio resolveu passar numa lancheria e pegar um café para a viagem e esquentar o corpo e o coração porque a hora da ligação que ele deveria fazer estava chegando e com ela a expectativa do encontro de logo mais.

Ele abre a porta da lancheria, modesta com bancos altos virados para um balcão antigo cheio de salgados parecidos com aqueles que a vó de qualquer um faria a qualquer hora. O ambiente cheira a fritura e a pó de café. Uma cafeteira gigante solta fumaça como um dragão de filmes onde dragões aparecem e fazem coisas que dragões fazem.  

“Um café.”, pede Lúcio.

“Com leite?”, pergunta o balconista.

“Puro, por favor.”

Ainda com aquelas coincidências na cabeça, Lúcio resolveu perguntar o nome do homem que servia o seu café. E para a sua surpresa também era Adão. Foi a gota d’água.

“Com licença, senhor”, se dirigiu a um homem que devorava um croquete sentado em uma mesa, “Como você se chama?”

“Que pergunta, meu! Me deixa comer!”

“Por favor, só me diz o seu nome e eu não lhe incomodo mais”, insistiu Lúcio.

“Meu nome é Adão, cara. Agora posso terminar de comer?”.

Intrigado, resolveu perguntar em voz alta se mais alguém ali tinha o mesmo nome, que levantasse a mão, Todos os homens que estavam comprando, comendo ou simplesmente passando o tempo levantaram as mãos. Esqueceu do café e do frio correndo em direção à rua e indagando todos os homens que passavam pelo seu caminho sobre seus nomes e para o seu estranhamento total as respostas não variavam.

Até que um Adão resolveu estender a conversa.

“Você é maluco, rapaz? Sair por aí perguntando o nome de todo mundo. Você não parece alguém que deva ser internado.”

“Isso é brincadeira. Deve ter havido algum engano, sei lá. Uma cidade toda não pode ter o mesmo nome. É impossível. Você tá entendendo?”

“Ah, é? Então qual é o TEU nome?”, disse o interlocutor de Lúcio num tom incisivo.

“Lúcio. O meu nome é Lúcio.”

“Hahahahaha. ISSO é brincadeira. Você realmente tem problemas, garoto. Vai procurar um médico.”

Lúcio foi ao encontro, teve algum sucesso com a dona do telefone. Ela realmente estava afim daquela noite e de mais alguns encontros, foram mais três. No quarto encontro, a menina botou as cartas na mesa (já se sentia confortável para falar de coisas mais sérias).

“Olha...Lúcio... você é um cara muito legal e eu gosto de ficar contigo, mas tem uma coisa que me incomoda um pouco...”. A moça estava hesitante.

“O que? Fala. Vamos resolver já. Assim não temos tempo dessas coisas virarem piração.”

“É sobre o teu nome. Pronto, falei.”

“Hã??”

“Sim. O teu nome... Não curto o teu nome, mas isso não quer dizer que eu não goste de você. Só vou ter que acostumar com ele.”

“Sério? Mas esse é o meu nome. Eu não posso trocar!”

“Eu sei. Mas existem nomes melhores. Ó, Adão, por exemplo. Eu acho um nome lindo.”

O mundo estava de cabeça para baixo e não havia mais jeito de voltar ao normal. Lúcio foi ao cartório e virou “Lúcio Adão dos Santos.”


terça-feira, 24 de dezembro de 2013

O Espírito do Natal passado

A época natalina sempre deixou Denilson tocado. Era coisa que o acompanhava desde criança, para ele, era mais do que especial ter a casa cheia de gente, a árvore repleta de presentes, estar perto de seus familiares e que todos estivessem alegres e ali para comer, beber e sorrir. Ele adorava comprar presentes, encher a casa de luzes e fazia questão de cuidar junto com a esposa de todos os preparativos da grande noite.

Dezembro chegou e com ele a proximidade dos dias mais importantes para o bancário que mais investia em Natal dentro de toda a rede do Banco Regional. Para alguns já era até piada, mas Denilson não se importava e ante as pilhérias dos amigos trazia para o trabalho um mini pinheiro e o posicionava em sua mesa para que todos pudessem ver.

Uma noite, após terminar a instalação das luzes na frente de sua casa, Natalino (sim, esse já era o seu apelido de longa data), foi dormir antes de sua mulher. Ele estava satisfeito porque seus projetos estavam dando certo mais um vez. Assim que desligou o interruptor de luz Denilson deu um pulo da cama quando viu um clarão se formar em frente a sua cama.

“Denilson! Preciso falar contigo, cara!”

“......e-e-eu-c-como assim?! Quem é você??”

“Ah não! Toda vez as mesmas perguntas! Vocês não conseguem inventar outro tipo de resposta sem que seja perguntando de volta? Ok. Eu tenho muitos nomes, mas agora me chama de Mitra. Digamos que é o meu nome da semana. Se nunca ouviu falar de mim procura no Google ou YouTube, tem um pessoal que me acha bem popular lá. Tem gente que até acredita que um outro cara que nasceu no mesmo dia que eu sou eu. Mas também acham que ele não era cabeludo, não era branco e não era uma pessoa legal. Nossa! Cansa só de ouvir toda essa contradição! Hahaha”

Denilson, mal conseguia enxergar porque o brilho em volta de Mitra era muito forte, mas pior era o sentimento de atordoamento e incredulidade. O que afinal de contas estaria acontecendo e o que aquela coisa queria?

“Não me machuca! Meu Deus, me salva!”, gritou ele num estado quase desesperador.

“Calma, Denilson... Calma, meu!! Caaaaalmaaaa!”, gritou de volta o jovem de cabelos dourados e roupa que se assemelhava a de um soldado romano. “Eu vim aqui pra te pedir um favor. Eu só posso pedir um favor por ano a alguém, não me faz ter perdido um ano inteiro, meu querido! Respira, ok? "

“O que você quer?”

“Quero que você me ajude a recolocar o festival em honra a mim (apontando para si com os polegares) na data certa mais um vez. O que seria daqui a dois dias (25 de dezembro). Em troca, você ganha um flat no Monte Hara, que é o equivalente a um Alphaville nos céus, por toda a eternidade. Você tem um ano pra recolocar isso nos eixos. Já perdi muito tempo e ando perdendo popularidade. Fora da internet ninguém mais me conhece. Meu, eu sou o sol do mundo novo. Trago luz pra essa joça e como assim viro um zé?”
Enquanto a aparição falava, Denilson tentava lembrar de todas as orações possíveis. Faltava memória.
“Eu nunca ouvi falar de você, Seu Mirra.”

“Aff... Mitra.”

“Isso. E Natal é outra coisa. É o nascimento de Cristo. Todo o mundo sabe disso.”, protestou o bancário.

“Eu sei, eu sei que eu demorei um pouco aí pra realmente tomar uma atitude, digamos, efetiva, mas agora eu tô aqui pronto para virar este jogo e retomar o que é meu por direito. É a minha data, Denilson. Imagina só, se alguém roubasse o teu aniversário, tipo, pra sempre. Tu ia gostar? Hein?... Claro que não.”

“E como eu faria isso?”

“Tenho alguns planos para melhorar a minha imagem. Primeiro: ninguém compra mais presente. Sem troca de presente. Eu tenho uma equipe que fez uma pesquisa e cheguei a conclusão que isso não condiz muito com a minha imagem. Talvez uma troca de insenso, de uns tecidos bonitos e mais nada. Outra coisa, que eu gostei e a gente pode manter é a coisa das luzes. Gosto disso e tem a ver comigo. Luzes nas casas, nas ruas, luzes pra sempre!”

“Você tá de brincadeira. Só pode...”

“Não, Denilson. Eu só estou aqui jogando ideias. É um Brainstorm. Fica bem à vontade para dar as tuas sugestões. Estive pensando num nome, uma coisa mais moderna e que, é claro, remeta à minha pessoa: Mitral. Aí as pessoas se desejariam ‘Feliz Mitral’. E aí? Você tá muito calado, cara! Me ajuda aqui, por favor!”

De repente, a luz do quarto acendeu e assim que Elisângela apareceu na porta Denilson correu assustado para fora do quarto, da casa e ganhou a rua para tomar fôlego. A mulher conseguiu alcança-lo, intrigada e sem entender nada.

“O que houve, homem do céu?”

“Acho que ando exagerando no Natal, amor.”

Compraram passagens e embarcaram para o nordeste no outro dia. Deixando todos os convidados desapontados sem a grande festa de Natalino.

Feliz Mitral. Feliz Natal.





segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Lap Dance
















A música é lenta, convidativa. Depois de um dia duro e de um mês de noites frias resolvo fazer algo novo e diferente que aqueça o coração e solte a mente junto a um gole a mais de qualquer coisa.

Sendo assim, existe coisa melhor que ir em busca de um amor maquiado? De alugar uma atenção qualquer?

O lugar foi escolhido aleatoriamente. A única preocupação era achar um lugar que eu pudesse entrar e sair vivo. Eu sabia o que queria: uma dança e uma bebida.

Obviamente nenhum destes estabelecimentos “de entretenimento interpessoal” são de fácil acesso, mas resolvi correr o risco. Saí do escritório mais tarde, desliguei o celular para que ninguém resolvesse me contatar àquela hora, nem mesmo a minha tia lá de Governador Valadares pudesse ter uma vontade estarrecedora de falar comigo e conseguir. Hoje não.

A decisão de para onde ir até que foi bem fácil. Uns trinta minutos de uma pesquisa rasa na internet me deu todas as informações que precisava. No verso do cartão de um cliente um endereço anotado e um nome Heaven Club. O nome me soava pouco ordinário, mas não no sentido de comum, mas de ordinário mesmo, pouco condizente com o lugar. Eu era um cliente desconfiado com o serviço que me seria oferecido.


Eis que estaciono o carro em uma rua transversal a do lugar, por motivos de pura lógica. Tirei relógio, corrente, aliança e deixei tudo dentro do porta-luvas. Saí do carro como se fosse um adolescente outra vez. Um homem de meia-idade, de terno e gravata escuros que deixava o rosa do neon do letreiro na parede fazer com que ele parecesse ainda mais misterioso, quase assustador, era quem cuidava da entrada.

Ele me balbuciou um boa noite e liberou a entrada da porta para que eu pudesse entrar. Não queria bancar o novato, empurrei a porta, ela dava num corredor longo e escuro só se via com nitidez a marca circular de luz moderada de dentro do salão. Abri a segunda porta com um ar decidido e dei de cara com um balcão e uma senhora, sim, uma senhora dos seus sessenta anos, mas em roupas um tanto ousadas. Ela logo foi me perguntando o que ia ser.

Fiquei meio sem ação, pois não esperava aquela sexagenária ali logo de cara. Ela repetiu a pergunta com muito menos paciência. Disse que queria uma bebida.

“Só a bebida?”

“Quanto é a dança?”

“Depende do que você vai querer.”

“Como assim?”

“A mais barata é sem contato algum, já a com contato é o dobro do preço: é R$ 100.”

Já que estava ali mesmo era melhor pedir o pacote completo. Seria só aquele dia mesmo, que fosse memorável. Ela me deu um cartão com um número, era o número da sala para onde eu deveria ir porque as salas de Lap Dance (era o que estava escrito no cartão) ficavam no fundo do clube.

Entrei na sala 6, era o que o cartão indicava. A sala rescendia a óleo de massagem e cigarro. A luz era ainda mais fraca que a do salão onde homens tinham conversas ao pé do ouvido ou dançavam de rosto colado com mulheres muito animadas e descontraídas que bebiam grandes quantidades de tudo o que se possa imaginar e talvez por isso eram animadas. O álcool faz dessas coisas.

Sentei na única cadeira que havia, afrouxei o nó da gravata e fiquei esperando o grande momento, até que uma música lenta e convidativa começou a tocar e não sei de onde surgiu uma morena de cabelos presos e com uma máscara que lhe cobria a região dos olhos. Ela tinha belos olhos e uma lingerie preta indefectível, com direito a cinta-liga e tudo mais.

A dança começou lenta, como a música e a uma distância segura. Abri o primeiro botão da camisa. Eu estava com calor, resolvi beber num gole só a cerveja que ainda restava na garrafa que havia levado para aquele espetáculo. Tinha valido cada centavo, com certeza. De repente, ela foi se aproximando, jogando os quadris para um lado e para o outro e virando de costas para que eu pudesse ver tudo, sem cortes.

Foi então que ela montou em mim e no ritmo da música, que já nem sabia se estava no mio ou no fim, foi afrouxando os cordões da máscara, lentamente... e foi aí que eu gelei, meu caro!

Quando ela tirou a máscara eu perdi o fôlego.

“Oi, amor... Nem avisou que ia chegar tarde em casa... Eu tinha pedido para você passar na lavandeira e pegar o vestido da mamãe!”

É por isso que eu estou aqui, doutor, para encaminhar os papeis. Quero o divórcio.






domingo, 22 de dezembro de 2013

Nove horas



O sol das nove horas da manhã ilumina o quarto deixando tudo num tom de âmbar. A brisa sacode as cortinas que impedem de voar as folhas que estão espalhadas no criado-mudo. Foi uma longa noite, mas não daquelas em que o espírito cansa de pensar ou calcular mirabolâncias. Não.  Foi simplesmente uma noite a mais. Daquelas em que tudo se mistura, se revela, se apaga e desaparece como se a vida fosse um capítulo confuso e desconexo de um livro mal escrito, mas nem isso importa. Já amanheceu.

Desta vez não adormeci. Ainda estou sentado frente à escrivaninha, com os pés em cima desta. Ao fundo toca uma música que não consigo identificar, parece jazz ou será blues? Nunca sei diferenciar direito. Sinto tuas mãos correrem lentas e delicadas pelos meus ombros em direção a meu peito: início de um abraço ou de qualquer coisa a mais... É um bom começo para o próximo capítulo, melhor anotar logo antes que a memória me traia.

Vejo os lençóis de minha cama. Estão intactos. Antes não estivessem. Estão assim porque o tempo é outro o fuso horário também. Quartos de hotel são irritantemente impessoais e me irritam profundamente porque não me lembram nada em especial, só que não tenho nada pelo que esperar a não ser o telefonema da chefia designando as próximas coordenadas. Enquanto isso ainda espero.

Olho de novo para a janela e sinto fome. Ponho meias, calço sapatos, calças e uma camiseta qualquer. Desço as escadas e conforme o vento que se forma pelo simples movimento que exerço bate mais e mais forte contra meu rosto.

“Quer um milho verde?”

É a pergunta que sempre ouço e que sempre tenho certa satisfação em responder: “Não”. Eu nunca fui de muitos vegetais mesmo, mas também gostava de ver a cara de “desisto” dela toda vez que ouvia eu dizer esse não. A expressão dela contra a luz do sol do verão é inspiradora. 

Ela sempre perguntava outra vez...

Ao chegar nos degraus finais da escada, vejo as mesas com o café servido. A variedade é boa, mas hoje acordei (pra vida) com vontade de comer mamão e mais nada. Ok, talvez um pouco de açúcar em cima, para melhorar o paladar,  mesmo porque não precisamos ser tão rigorosos nesta coisa toda de frutas!
Entre uma colherada e outra sinto tocar o meu celular. São eles.

“Como vai o nosso homem mais eficiente?”

“Aproveitando a oportunidade desta vista aqui. Diga...”

“Queremos isso aí entregue até amanhã, ok?”

“Entendido, senhor.”

De volta ao quarto, começo a organizar meus instrumentos de trabalho. Se eles falassem teriam muita história para contar. Um a um, os posiciono sobre a mesa me certificando de que nenhum deles seja esquecido. São parte importante do meu trabalho, as vezes penso que têm importância maior do que eu mesmo.

Desliza pelas cortinas uma brisa leve com cheiro de verão. Junto a ela um perfume que me lembra de muita coisa. Um perfume adocicado, que me lembra o cheiro dela e, não a deixe ouvir, de todas as outras que passaram e que por um motivo ou outro não puderam ou não quiseram ficar. Aquilo me embriagou por alguns instantes.

Era hora de voltar a escrever. Não daria para deixar o momento passar. Às vezes me sinto como um surfista. Há de se esperar e esperar até chegar a onda perfeita e nela conseguir mostrar o melhor de sua habilidade.


Usar “Era uma vez” é cliché demais, talvez se usar “Um dia me contaram que...” seria melhor..

Porta-retratos

Quantas árvores sangraram, morreram e renasceram aqui?

Quantos incontáveis grãos, talvez da areia que viajou muito mais milhas do que eu posso imaginar, se uniram pra formar esse vidro que protege a mim agora.

Eu olhando pro nada, com olhar bobo e sorriso alegre que não muda mesmo que algo totalmente do avesso aconteça.

Eu vou continuar ali, imóvel, feliz. Pois um dia num tempo já remoto me fizeste sorrir, olhar com orgulho pr'aquela lente que fria apenas capturou o que via.

Não há mais porque.

Sem mais nem porque.

Tua beleza ficou registrada naquele pedaço de papel. Junto a minha mocidade, que já vai longe. Junto a minha ingenuidade, já morta. Junto a minha felicidade, já torta.


Desentorta. Ajeita na parede nosso quadro e no criado-mudo o mais belo porta-retrato de outrora. 

Deixa aí.


Vórtice

“Eu não acredito!! Coisa boa te ver de novo! Vem cá, me dá um abraço!” Meu estômago embrulha, dá voltas. Nem a maior montanha-russa na qual eu já estive fez algo semelhante comigo...



A porta se abre. Vejo uma casa a qual não conheço e tudo o que está dentro dela não me pertence. Causa-me certo estranhamento pisar nesse chão e é como se tivesse entrado num vórtice que me sugou e me deixou sem as memórias de quando e como acabei nessa situação.

Nada me agrada. De repente, um rapaz novo de roupas em tons escuros me aponta para uma mesa de jantar com uma toalha simples, mas bem ornada, dentro de uma sala de jantar não muito grande. Ele me pergunta se eu sei o porquê de aquela toalha estar ali daquela maneira, respondo que não faço ideia. Então ele me diz algo sobre o esoterismo, portais e outras coisas cósmicas. Penso em quanto tempo eu não vou à igreja, depois constato que nunca fui muito de igrejas ou lugares sagrados mesmo.

Após a pequena lição ele me acompanha alguns passos a mais até um corredor horizontal com duas saídas, uma para a sala de estar onde uma mulher de meia idade, muito bem vestida, com os cabelos presos num coque e dentro de um vestido florido, quase como aqueles que se põe para ir à festas, assistia calmamente algo na televisão.

Na cozinha, era ela de costas. Até de costas ainda a reconheço. Conversava com uma outra mulher que ao me ver sumiu. Quando enfim fui notado, ouvi um, “Eu não acredito!! Coisa boa te ver de novo! Vem cá, me dá um abraço!” e se aninhou em mim. Ainda vestia um pijama de cores claras: calça, blusa e um robe aberto que era algo como rosa-claro ou azul-bebê. Ao vê-la, fiquei contrariado. Não pude evitar...

Senti algo como um apagão outra vez, aí o tom da conversa já estava em “Josias quis saber por que você não foi conhecê-lo ... ”.

“Você só pode estar brincando! Tá achando que eu sou o que? Palhaço, por acaso?”

“Não grita! Tem muita gente aqui. Não quero que nos ouçam.”

“Não me interessa que nos ouçam... Eu nem sei o que me trouxe aqui..”

“Não fala assim. Você não o conhece. O pai dele é muito poderoso. É dono de muita cosia. Tu vai correr perigo se ficar se negando a fazer o que ele quer..”

“É assim que você é tratada, pelo visto. Ainda reage na base do medo porque o pai dele....Quer saber? Por mim o pai dele pode ser Deus. Ele não é mais homem do que eu! Isso é patético!”

Abri os olhos com a cabeça e os braços dormentes...


Cantor de fruteira


“Para mim, cada cidade é um porto. Um lugar por onde passo e só. Ás vezes me imagino como algum marinheiro do asfalto, um viajante de todo lugar, mas de lugar nenhum”, disse ele como quem joga a rede e espera paciente o peixe que se descuidará e entrará no meio do emaranhado de fios. Luan tinha boas ideias. Hoje, ele “conversava”, como o próprio gostava de definir para os amigos, mais por esporte que por outro motivo. “Você viaja muito?”, perguntou a menina morena de rosto arredondado e olhos escuros que pagava as ameixas no caixa da fruteira. Pronto. Agora era só puxar a rede. “Claro! Tenho muitas histórias de viagem. Quer ouvir mais?”

Ela sorriu, pegou a sacola de frutas e disse um tchau que segundo a definição do dicionário de ironias da civilização, codificado depois da descoberta dos Jardins Suspensos da Babilônia e do Código de Hamurabi, queria dizer “Que papinho sem graça! Eu, hein... ”, que ainda segundo o mesmo livro significa: “Aquela retórica que é proferida em um lugar impróprio e é execrada cordialmente pelo interlocutor”.

Enquanto isso entre as maçãs argentinas e a caixa de carambolas, mirando o espelho posicionado de maneira muito criativa em cima das frutas para que se tenha uma ilusão de ótica de maior quantidade de produtos, outro peixe havia sido fisgado sem nem ao menos ser considerado pelo pescador. Alice conhecia Luan desde a época das aulas de canto. Aulas estas que ele odiava, mas fora matriculado por insistência de tia Albertina, a soprano da família que costumava se apresentar em bingos beneficentes e jantares do Lions Club, uma sociedade semi-secreta onde a nata da maturidade abastada da cidade se reúne para expor sua burguesia e organização sem medo de represálias.

Voltando a Alice, ela sempre gostou de Luan. Achava-o bonitinho, com boa voz, etc, etc. Já ele, só queria saber de cantar Tim Maia em inglês. O que foi um dos grandes desafios de sua adolescência.

“We gonna rule the world
Don’t you know? Don’t you know?..”

E sim, a fase “racional” do velho Tim era a sua preferida. Ela odiava, mas nem ligava, era ligada no estilo dele e em seu groove ao interpretar. Hoje era o dia. Ia ser agora. Ele ia notá-la!

“Oi... eu estava ali escolhendo umas carambolas e não pude deixar de ouvir, você é um viajante? Sério? Eu gostaria muito de ouvir as tuas histórias.. bom... a gente nem se conhece, né? Nossa, que vergonha! Eu sou a Alice, prazer..”

“Hãmm.... ah...oi... Eu...Meu nome é...Luan...”

O cantor de outrora não se sentiu confortável com aquela situação e acabou por dizer qualquer coisa para a menina, sorriu com educação, disse que contaria mais sobre suas viagens, com todo o prazer, mas havia lembrado que hoje tinha algo importantíssimo para fazer. E foi embora.

Deixando Alice absorta em seu mundo de frustrações, entre os brócolis e as couves-flores.


“Os homens têm medo da paixão/Ela fere, ela mata/como um dragão”

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Tango

Tan – Tan – Tan – Tã.

O brilho suave e prateado da lua cheia ilumina os meus sapatos quase novos. Sinto-me importante outra vez enfim. É noite, a cama não chama e nem o travesseiro satisfaz.

Na rua.

É onde a procura acaba. Sinto um perfume qualquer que exala não sei de onde. É quando ouço o som soar.

Tan – Tan – Tan – Tã.

Caminho um pouco mais e vejo a porta aberta, a luz, que é meia-luz, acesa. A melodia me tenta, tento fugir, afinal, é só uma caminhada, mas a rosa no cabelo me puxa tal tivesse a força de mil exércitos.

Vem, é só uma dança!

O salão ainda vazio, mas não importa, fui escolhido pela rosa, pelo vestido justo ao corpo, pela melodia melancólica e cadenciada do bandoneon. Sinto-me apenas flutuar, faz tempo desde a última vez, muito, e é como se não fosse. Aqui, riscando o chão desse lugar tudo faz sentido.

As dores da vida, do amor e do mundo não tem nenhuma importância. Somos todos hipnotizados por essa vida e tal como hipnóticos seguimos até o último salão cerrar suas portas.

 Tan – Tan – Tan – Tã.

domingo, 8 de setembro de 2013

Sobre malas e gelo

O furor não é nada mais que coisa fugaz e passageira. Ele vai e com ele os anos de minha vida. Já foram quantos? Nem me dou o trabalho de contar.

As pedras de gelo do meu copo dançam coladas uma na outra como se estivessem numa slow dance tão melhor que as dos casais que conheço ou que conheci. Esse tem mais mobilidade e sincronia e tal como alguns outros que também conheci, de perto ou de história, irá se desfazer aos poucos, pela ação do tempo ou do desuso, a não ser que não se movam. É inevitável, pois como dizem por aí: praticamente tudo é renovável.

Gosto de malas. Acho-as muito práticas e cheias de significado. Postas no chão depois de longa viagem traz alívio. Postas na porta com você do lado de fora transforma tudo em novo começo mesmo que às vezes o começo seja sem você, a primeira vista.

Visto o casaco, o cachecol, as luvas e saio desse lugar. Nunca me senti realmente inteiro aqui. O cheiro de borracha queimada dos trilhos da estação me invadem as narinas mesmo eu estando a alguns quarteirões de distância do início da minha mudança. Penso em como seria bom comer agora um apfelstrudel, mesmo que nunca tenha provado um e que esteja à quilômetros inimagináveis de achar alguém que saiba o que é isso. São coisas que a internet faz com você. Ter memórias de coisas que não são realmente parte do seu mundo.

Sigo pela rua movimentada. Vendedores ávidos pelo próximo faturamento me abordam a todo instante, solícitos e simpáticos, mas não chamam minha atenção. Malabaristas, artistas, cantores itinerantes entretêm crianças e idosos com suas performances, ilusões gratuitas, mas nenhuma melodia ou truque ótico me fará enxergar de forma diferente a realidade de que não há mais espaço relevante para mim nesta cidade. “Vai mesmo! Há muitos lugares no mundo”, dirão vocês, “Vou sem pensar em voltar”, direi eu.

Fica por aqui quem quiser ficar, quem puder chegar. Faz frio demais para lamentações.
Não compro um “guia do viajante”.

Satolep, Istambul, Pasárgada ou Macondo. Os ventos da lucidez me levarão adiante, para onde o rei será mais que um amigo e tecerá teorias sobre pedras de gelo em copos de scotch sentado a meu lado.
   


domingo, 25 de agosto de 2013

Maré

Onda é um vai e vem.

Pondo os olhos em direção à frente, ao oceano sem fim, é certo que se vê que ela não precisa de ninguém.

Dessa vez não quero mergulhar, nem conchas apanhar ou passos deixar. Minhas pegadas não importam. 
Quero que agora só o vento carregue o meu pensamento pra dentro da maré.

Maré cheia. Tarde inteira. Lua inteira. Vida e meia...

Brilham as espumas que flutuam. Elas não tem culpa nenhuma de ficar à deriva. Tudo sempre foi assim. Desde que o mundo é mundo.


Maré inteira. Tarde e meia. Vida cheia...

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

A pipa e a queda

Começo esse texto caindo. O que em algum lugar longínquo dentro dos territórios confusos e peculiares do meu ponto de vista, nem parece tão ruim assim, mas por vezes necessário.

Inicio tudo por cair no óbvio. Na diferença notável, mas não imperceptível que há entre escrever e ler. Para escrever com certa habilidade é preciso, no mínimo, de imaginação, transpiração, vontade observadora e algo que inventei chamar de passive-aggressive boost, ou seja, transformar simples observações em ação. Ser, portanto, um intérprete de si mesmo e do mundo, para viver um grande amo... Opa! Texto errado!

Os que pensam que a leitura é mais fácil, na na ni na. Sinto, meus amigos, que a leitura nos exija a perícia de alguém que saiba empinar pipas muito bem. Muito embora eu não tenha a mínima noção de como é isso (coisa que não fiz em minha infância).

É preciso que o jogo entre prender a atenção e soltar a imaginação seja de uma sincronia fortíssima. E eis então que sinto falta da minha pipa colorida lá em cima, serpenteando ágil na amplidão. Escrevendo no céu coisas que só eu consigo enxergar, mas que quem quiser pode ver.

terça-feira, 30 de julho de 2013

Das vantagens de usar Óculos (e outros tipos de lente)





Enxergar melhor.

Poder enxergar o mundo em HD, ou o máximo que a sua lente permitir.

Ter a condição de numa roda de pessoas ou em alguma situação deveras decisiva, ajeitar os óculos de forma com que você sempre e invariavelmente pareça mais inteligente e interessante do que você realmente é. Isso resolve algumas coisas.

Tentar chamar a atenção de mais meninas do Leblon que não olham mais pra você, ou mesmo de outro lugar que se esteja (esta vantagem não possui restrições territoriais). 

Enxergar melhor. 

Óculos de sol não serão aqui citados, pois eles não impõem real respeito nem contribuem na saúde. É outra categoria...

Monóculos também estão fora de questão por motivos temporais. 

Lentes de contato são legais e plenamente aceitáveis.

A brincadeira sadia de logo após o banho embaçar suas lentes por conta do vapor do banheiro lembra a infância e te proporciona um momento jocoso!

[Fim da lista]

domingo, 28 de julho de 2013

Je ne parle pas français


“Será que esse lugar fica muito longe?”, pergunto a um senhor que passa por mim. Ele está bem vestido, carrega uma pasta preta e um jeito de certa pressa existencial.

“Meu jovem, não tenho tempo para essas coisas. Estou apressado demais”, diz ele tentando manter seu ritmo de caminhada e me ignorar completamente.  

É domingo. Faz um sol não mais que morno e dias assim não costumam ser muito diferentes mesmo, pois domingos são assim. Só o que tenho é um postal amarelado com duas palavras escritas no verso Laurent hôtel - 408. Não fazia a menor ideia de onde ficava o lugar. Muito menos o porquê daquele acento estranho no “o” da palavra “hotel”.

Nessa cidade tudo é encantadoramente complicado e caótico. Por isso pessoas como eu resolvem às vezes sair por aí de bicicleta mesmo. Poupa-se tempo e algum dinheiro adotando essa prática.

Não tinha em mente algo concreto e claro do quê fazer. Pretendia simplesmente pedalar pelas ruas e deixar qualquer resquício de vida mecânica, industrial, rotulada e rotineira para trás por alguma hora e meia.

Logo no início da minha programação me distraí ao passar por baixo das estruturas de um edifício em obras. Colunas e essas coisas sempre me fascinaram. Lembro que quando menino gostava de desenhar casas, prédios, pontes, diferentes tipos de tijolos. Até os que não existiam eu inventava....

De repente estava meio desorientado e caído no chão. Lembro que a primeira coisa que notei, mesmo ali entre as pedras da calçada, foram as sapatilhas pretas e o vestido branco florido que não mostrava mais que um pouco abaixo dos joelhos de uma menina que sorria muito. Ria, na verdade. Ria de mim.

“Desculpa... ai...” (meu cotovelo direito)
“Tu tá bem?”
“Acho que sobrevivo. E tu, moça? Não parece machucada...”

Por algum motivo, ela nada tinha sofrido.

“A minha bolsa caiu, mas não tinha nada que pudesse ser quebrado. Olha por onde anda da próxima vez, tá? Cuidado.”

Enquanto juntava os pedaços de mim e averiguava se a magrela tinha condições de seguir, notei um cartão caído perto de onde eu estava. Era o tal cartão que tenho em mãos agora, pois sei que ele caiu da bolsa da minha vítima.

Por um instante, me senti dentro de um filme antigo. Mocinho com pista de mulher misteriosa à sua procura e tudo de bom que isso talvez resulte. Por isso preciso achar o lugar que está escrito nesse papel, encontrá-la e pedir desculpas decentes. (Sim, sou um cara antiquado. Sei que minhas atitudes meio que cheiram a mofo às vezes, mas que fazer?)

Após a negativa do homem apressado, sentei numa escadaria de um edifício para pensar. Eu precisava de um plano que desse certo. Mas como fazer? Nessa cidade desse tamanho, seria um pouco difícil para achar esse tal hotel. Será que ela é de outro lugar? Tinha jeito de estudante...

Então tive uma ideia bem efetiva. Fui até a casa de Pedro, um amigo de longa data. Ele me emprestou seu computador com internet por alguns minutos. Achei o endereço. Viva as modernidades!

A caminho do hotel, que não ficava muito longe de onde eu estava. Vinte minutos bastariam para que eu chegasse lá, eis que meu telefone toca. Ao olhar para o visor vejo que não reconheço quem liga. Ao atender nem tenho tempo de falar nada...

“Je sais ce que vous cherchez pour moi... Je suis en attente”
(Sei que você me procura. Estou esperando.)

Fiquei confuso. Por que alguém me liga e fala em francês? Eu não sei francês.
“Oi? Olha... Não entendi nada. Talvez tenha sido engano...”

Desligou. Fiquei sem entender, mas desconfiei que tivesse tudo a ver com o cartão postal, a menina e o hotel.

Finalmente ao chegar ao Laurent hôtel, um lugar antigo, mas bem cuidado que pouco se assemelhava com o que tinha imaginado, deixei minha condução encostada na frente. Entrei um pouco incomodado, ainda pensando no que tinha ouvido daquela voz ao telefone. Uma mulher que parecia ser a dona do lugar lia um livro com um ar solene. Seus óculos estavam na ponta de seu nariz fino e longo.

“Boa tarde, senhora. Estou procurando por um menina. Tenho que devolver esse cartão para ela. Acredito que ela esteja aqui no quarto... quatrocentos e oito.”
“Você sabe o nome dela?”
“Hum...Não.”
“Eu não posso dar inforrrmações sobrrre meus hóspedes a estrrranhos, menino!”

Sem mais argumentos e bastante contrariado, agradeci e saí. Já do lado de fora do hotel ouço um “Tu é rápido mesmo!”. Era ela..

“Oi! Hum... é.... eu.... Ah! Teu cartão. Eu acho q é teu. É né?”

Rindo mais um pouco de toda a minha desenvoltura, ela assertiu com a cabeça. Achei que era hora de ir embora, cheguei a duvidar de tudo o que tinha feito até ali.

“Então tchau.”
“Como assim, ‘tchau’? É só isso?” disse ela. “Uso até meu francês contigo e é isso?”

Essa pergunta resultou num café, num número de telefone e na descoberta que Maria era prima de, quem diria, meu amigo Pedro.

Vou ter que aprender francês urgentemente. Acho que vou pedalar menos também.


quinta-feira, 25 de julho de 2013

Só pra constar

O Inverno deixa as pessoas com um ar de maior normalidade. O frio deixa mais paciente e com movimentos corporais mais centralizados, menos expansivos.

Somos convidados a um ensimesmamento muito charmoso, afinal, o Verão nem liga pra essas coisas. Ele está muito ocupado planejando a lista de pessoas que irá convidar para a próxima festa que dará e que certamente vai durar dias!

domingo, 21 de julho de 2013

Perseguição

Me persegues. 

Pelas ruas, filas, becos estreitos, bancos lotados, praças abandonadas.

Vagões em movimento, balsas no último horário.

Fujo...

Sonhas comigo, eu sei.

Amigos te maldizem, a Noite te canta. Todos te buscam, te exaltam como heroína nacional.

Menos eu, minha prosa e minhas lorotas.

Quando inevitavelmente me encontrares na rua e um “Por quê?’ faíscar de teus olhos, direi:

“É só legítima defesa, amor”.


Antes de ser, sem outra saída, enfim, apunhalado outra vez.  

domingo, 14 de julho de 2013

Manual de aniversário

Fazer aniversário é uma coisa no mínimo interessante, pois, sinceramente, nunca sei como reagir direito à coisa, mesmo achando muito legal.

Já foram tantos, mas a cada ano tem um gosto de coisa nova. Aniversário tem gosto de raspa de merengue na tigela da batedeira, tem gosto de refrigerante (por mais velho que você seja e por mais álcool que você ingira normalmente). Aniversário tem que ser colorido e ter balões, é claro!

Não, eu não enlouqueci ou estou bancando o bobalhão. Seja qual for a idade que se faça,  algumas coisas não vão e nem devem mudar nessa questão operacional, por isso as minhas impressões sobre balões e sobre o gosto do aniversário.

Tá certo, aqueles chapéus pontudos eu também acho um pouco demais. A não ser que seja para fins de pura galhofa.

Da música

Variações sobre a música característica alusiva a data, que muito honra e desconcerta o homenageado: o “Parabéns a você”, pode ser até improvisado (com palmas, sempre) e às vezes até em outro idioma. De preferência, o aniversariante deve ficar localizado em um espaço onde todos o vejam e possam vislumbrar sua expressão de não saber o que fazer. Geralmente, ele acaba por bater palmas também como se nada daquilo fosse para ele.  

Obs.: As palavras “É big... é hora...” tem um limite numérico, cinco vezes. Não mais que isso, para que se evite um “é big, é big, é big, é big....” interminável e constrangedor.

Do bolo

Pouco importa o recheio, mas que tenha cobertura e um espaço suficientemente bom para que uma ou mais velas sejam posicionadas e acesas.

Da vela

É um must have. O simples detalhe do bolo sem uma vela acaba por jogar pelos ares toda a proposta filosófica do aniversário.

Mas ainda que nada disso saia direito, o dia não perde a validade. 

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Ela tinha algo que as outras não tinham e que nunca, nem em sonho conseguiriam ter. Quê era aquilo? Eram os olhos. O jeito de mirar as coisas. Não era triste, nem desinteressado ou aos pedaços como já é o olhar de algumas pessoas, era diferente. Era vivo, e vivo deixava tudo por onde pousava aquele olhar que pousou em mim e disse nunca mais sair de mim.

Não, meu senhor. Não é mais uma história que exalta ou esclarece o sentir. Apenas conto o que vi, só isso. Aqueles olhos um dia passaram por mim e me fizeram ser o que sou. Não! Não penses que é com orgulho ou razão aflorada que te digo isso, pois não é o amor que manda em minha fala. É apenas o acaso e por vezes o infortúnio que apareceram entre flores e espinhos.

Um dia, estes olhos foram para longe. Tão longe quanto possas imaginar... E tudo se fez igual, sem final e sem saída. Acho até que dentre algumas festividades se dava para tirar da mente aquela infeliz obsessão pelos tais olhos da amiga. Mas passadas as alegrias, cantos e bebidas eis que surgia a falta retumbantemente grande de ser visto e quisto...

Viajei. Fui a Piracicaba tomar famosa aguardente que um conhecido me tinha indicado. Lhe dou uma chance para adivinhar quem estava no fundo de cada copo...

Mudei. Rotas para o trabalho, todas diferentes. Hábitos alimentares também. Comprei um fiel e afável cachorrinho que muito me mira e depende, mas óbvio que é só um cão e que ocupa em parte meu tempo.

Não sofro, pois é em vão. Não espero nem desespero mais. Mesmo porque não sou homem desses gestos, minha criação tradicional somada a excesso de timidez me impede de tais coisas. Hoje preciso levar Urso (o cachorro) para alguns exercícios ao ar livre.


Mas vamos tratar do senhor, veio escolher seus óculos, não é isso?

domingo, 16 de junho de 2013

Um a Um

A solidão existe. Ela é real e está em tudo. Ela não vem de fora para dentro, mas de dentro para fora. É estado de espírito.

Ela se esconde e aparece quando e onde menos esperamos: embaixo das cobertas, dentro de livros, na velocidade do dia, no vento frio que vem do mar.

A questão não é como eliminá-la, uma hora ou outra você vai ser atingido. Tudo depende de como saber driblá-la. Tal qual centroavante de talento que não dá chance pros zagueiros adversários, entra com propriedade e ousadia na área e chuta forte...


 Por enquanto, um a um...

Pedido

Não...

Nem abra as cortinas, deixa o mínimo de luz entrar, que é pra não estragar esse aqui, esse agora.

O mundo tem muito espinho, rosa, e a vida é corda-bamba sem rede embaixo.

Então melhor é mesmo se atirar de cabeça e aproveitar o frio na barriga da queda livre.

Essa cama é muito grande e o inverno, muito frio.

Me aquece? Nem que seja só por hoje...

Fecha os olhos, se encosta em meu peito e deixa o mundo girar lá fora.

Às vezes parece que só a gente se entende mesmo.

Por isso, fica um pouco mais. Deixa o dólar, a notícia, o vento frio e o novíssimo celular que tudo faz e tudo pode, lá fora, longe da gente.

E se realmente precisar ir, mesmo que sem querer vai acabar deixando algo teu em mim. Aquela dança, aquele sorriso, uma fala qualquer...


Tua rosa tatuada em minha pele.

domingo, 26 de maio de 2013

Pena


Não quero começar esse texto com lugares escuros, nem com músicas que tocam ao fundo de onde quer que seja lembrando sabe-se lá o quê. Quero paz...

No fundo, hoje é dia dessa pena deixar a metáfora de lado e se mostrar, pois não há outra saída. Essa pena não quer mais escrever pela guerra, pela luta diária contra o passado, contra a tristeza, contra tudo e contra todos, contra si mesma. A pena não quer mais penas (salvo o trocadilho). Essa pena quer paz.

A folha em branco nunca fica nula. Nunca lembra nada, assim, nua.

A pena tem por anseio rompê-la em versos, em linhas corridas. Como se correr fosse o fado dessa pena.

Essa pena gostaria de ser solar. De versar livre a alegria, de fazer história todo dia, mas não, ela só agrada a quem se reconhece nela, e só.

“A vida é real e de viés”, não é fotografia que tiramos com óculos escuros, olhando com expressão despreocupada diretamente para o nada dentro de algum carro com a janela aberta e cabelos ao vento.

Quando a pena encontrar aquilo pelo quê escrever, talvez então seja o dia em que amanhecer e anoitecer sejam coisas completamente diferentes.

Por enquanto, a musa ainda chora baixinho...

terça-feira, 14 de maio de 2013

Abre-alas



Abre-alas pra todos que vem por aí. Abre-alas pra mim e pra você. Que somente repique e reverbere o que tiver de ser. O resto, que vire recordação ou nem isso. Se o samba não é bom, não vale a pena ser dançado. Samba alegre, que dá enredo, vira agremiação, escola, ensina, é carnaval

Mas não se engana, pessoal, a quarta-feira sempre chega e deixa aquele amargo, aquela coisa de nostalgia com gosto de cerveja quente.

Abre-alas pra alegria. Abre-alas pra canção. Seja de que forma for, porque o tom dela não se escolhe, se prefere. É diferente.

“Abre-alas pra minha folia, já está chegando a hora”.

domingo, 12 de maio de 2013

O Espelho


Eu não estou ficando mais jovem. O espelho me mostra isso a cada dia que passa. Mas também há tanto pra fazer e pra pensar que a minha juventude acaba sendo o preço a ser pago por todos esses dias.

Moro muito perto de um aeroporto. O que significa barulho. Meus momentos de paz dependem muito das condições meteorológicas e da quantidade de aviões que decolam e pousam. Engraçado, que quando pequeno sempre quis ser piloto. Hoje, tento pilotar a minha própria vida. Com algum sucesso.

Há meio ano fui a um brechó, pois precisava de algumas coisas para mobiliar o apartamento a preços módicos. Lá, havia um espelho. Eu sinceramente, não precisava de um espelho. Acabei comprando para alguma eventualidade.

Não sou um homem vaidoso, mas o pus em um canto da sala do apê. Ali ele ficou e durante umas boas semanas eu nem o olhava e até o esquecia por uns tempos. Uma noite, acordei para um copo d’água e no caminho para a geladeira não pude deixar de notar uma estranha claridade na minha mais nova aquisição. Estava brilhando! (?)

Fiquei paralisado por uns instantes olhando aquilo e pensando que certamente devia ter bebido demais, mas eu não tinha posto uma gota de álcool na boca. Então o que era aquilo afinal de contas?

Resolvi chegar mais perto, com muita calma, pé ante pé. Conforme eu me aproximava a claridade ia ficando maior e mais nítida, ganhando formas e feições conhecidas. Quando fiquei frente a frente com o espelho. Vi com estes olhos que um dia a terra há de terminar de comer (porque a hipermetropia já começou o processo), um rosto. Exatamente, um rosto que não era de homem, nem de mulher. Não dava para definir com certeza. Então, o mais bizarro aconteceu. O rosto me olhou e disse:

“Quer saber quem é a mais bela do reino ou quer saber seu futuro?”

No outro dia, fui ao brechó e devolvi o adivinho. Ele anda meio desatualizado. Não há mais reinos e essa coisa de “mais bela” hoje em dia, só em trajes de banho mesmo.

Pedi meu dinheiro de volta.      

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Epifania

Hoje sei que a expressão "Eleva teu pensamento" realmente tem razão de ser.

Estava no elevador, entre o quarto e o quinto andar, quando tive uma impressão quase epifânica: tenho dificuldade em terminar o que começo.

Ainda não tenho bem a clara certeza da gravidade disso, mas sei que é assim.

Recapitulando bem, noto uma boa meia-dúzia de coisas que sempre vou deixando pra depois, pra outra hora, outro dia... e acaba que nada disso tem fim.

É, mas desse texto é o final. Sim, pode passar para o próximo.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Contraconto


Há tempos que não vemos a luz do sol. Nosso povo tem fome. Guardei esse pedaço de papel como se fosse a minha própria vida junto com essa vela. Nosso povo está em guerra. Contra tudo, todos e contra si mesmo há tempo demais.

Nosso rei é um lunático. Depois que nossa rainha foi levada pelo inimigo ele nunca mais a encontrou e vive de espada desembainhada. Queima pontes, não abriga estrangeiros e mata todos os que acha suspeitos. Já foram oferecidas diversas princesas para aplacar a sua ira, mas de nada adianta. Um homem repleto de amor, mas cego de ódio é o que temos aqui.

Antigamente nem sabíamos quem ele era, pois não gostava de aparecer e éramos tão estúpidamente felizes que nem pensávamos nisso e, sinceramente, achávamos graça nesse certo mistério que nosso rei fazia e a privacidade que tinha com sua vida pessoal. Mas após a primeira invasão e o sequestro da esposa ele passou a não se importar com mais nada.

No dia em que um imenso dragão sobrevoou o palácio, parecendo que para coroar a má fase do nosso monarca, ele se posicionou de peito aberto e besta em punho em frente ao castelo e aos gritos de “me leva se tem coragem, seu maldito!”. Gastou toda a sua munição na direção do monstro sem atingi-lo. Parecia que o animal somente queria assustá-lo.

Hoje, o que temos aqui é um homem de cabelos brancos que toda noite olha para além das montanhas sem achar nada, ainda que tenha posto quase todo o exército a procura da mulher que ama.

Todos nós ainda procuramos um final mais feliz.

Como um conto de fadas qualquer


Aqui todos dormem quando querem ou precisam. Ninguém sente necessidade, a não ser uns da companhia dos outros. As estradas são limpas, arborizadas e todos podem brincar e aproveitar cada pôr-do-sol.

Assim é este reino, meus caros. Não há fome ou sede que não possa ser saciada. Não existe atenção que não possa ser dada, nem mesmo abraço que não seja compartilhado.

As pessoas são felizes na imensa maioria do tempo. As crianças tem pais, os adultos sorriem e os idosos contemplam e se reúnem para manter as histórias do lugar muito vivas, pois vivos também se sentem.

Aqui também existe a nobreza. Ela se preocupa muito mais com o bem estar dos outros do que o dela mesma. Tanto, que ninguém conhece pessoalmente o rei, a rainha e sua corte. Apenas se sabe das suas benfeitorias e das mensagens que deixam em placas com o timbre real, que ficam espalhadas pelas ruas. O povo nunca reclamou disso, pois é bem alimentado e saudável.

Estranhamente existe algo na água deste reino, meus amigos, que traz uma mágica. Diz a lenda que há um casal que mora nas montanhas que bebeu dela e nunca mais envelheceu. É verdade que poucos os veem e as informações são desencontradas, mas de qualquer jeito isso deixou nosso lugar mais famoso.

As frutas estão sempre frescas, e as flores, vivas. Nada acaba ou esmorece, assim, de repente.
E o povo vive como num eterno passeio, que nunca termina, que parece que não terá mais fim.

Não há exército e nossas fronteiras não precisam ser guardadas por ninguém porque somos um povo amigável e pacífico.

E vivemos felizes para sempre.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Sol

O sol soluciona tudo o que a noite insiste em esconder e dramatizar. Até o anoitecer...

domingo, 14 de abril de 2013

Grande Hotel


Não sinto os meus dedos. A sensação é incômoda, muito incômoda. Não há onde me abrigar. A não ser em meu casaco, que já tinha visto uns dois invernos antes desse e já não tinha mais toda aquela novidade. Faz frio, um frio que cala a todos.

Passa das seis. Venho descendo as ruas em direção a parte mais iluminada e movimentada da cidade. Só o que se ouve é o assobio do vento que faz questão de ser a minha companhia nessa noite e o barulho do trânsito. Lembro da vitrola e dos vinis que esperam por mim, prontos para me brindar com todas as músicas que já conheço de cór. O bom de conhecer muito bem alguma coisa é que não precisamos de esforço algum para recordá-las.

Paro na calçada e olho para cima. É aqui o hotel onde tenho ficado. Recebo um ‘boa noite’ cordialmente automático do vigia que abre a porta para mim. Entro.

Ao entrar no quarto depois de oito andares num elevador repleto de mim, não me importo mais se está frio. Abro as duas folhas da janela e fico observando o movimento que resta no dia de hoje. Não é possível se pensar em mais nada dentro desse quarto de hotel.

Abro a maleta, coloco a agulha no disco e deixo meus conhecidos entrar e se juntar a mim nessa leitura de sacada.   

terça-feira, 9 de abril de 2013

Ideal



Romances me fazem lembrar o aroma do café, que é muito mais um banquete ao olfato e a todo o resto, do que propriamente para o paladar.

Para sorvê-lo, não se deve ser assim, às pressas. Há de existir certa quantidade de luz, nem de menos e nem de mais, e ainda um ambiente minimamente decente para que o café, de fato, valha a pena.

Sua apresentação é tudo. Tudo pode ser posto a perder se ele estiver numa xícara ruim, de pouca beleza.

Beleza, seja ela exterior ou interior, aproxima em qualidades o café e o amor.

De preferência deve ser quente ou que nos passe alguma ilusão de calor. Nem que seja por algum tempo ou por alguma tarde fria. Se for fria mesmo, tanto melhor .   

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Capoeira


Rodolfo era o tipo de cara que não levava desaforo pra casa. Onde chegava, se houvesse algum tipo de zueira ou mal-entendido forte, ele, que era bom capoeira, já tratava logo de se levantar e saber o que havia.

Não era alto, mas tinha coragem de sobra. Dizia sua tia que foi porque nasceu em noite de lua nova num Outubro há uns trinta e poucos anos e isso fazia toda a diferença.

Um dia, voltando do trabalho. Marmita na mão e com o passo macio. Era trabalhador e não tinha pressa de chegar em casa. Morava só. Até que seus passos cruzaram com os da Rosa. Ela sorriu, mas fugiu dele com a agilidade de passista mulata que era.

Na fuga, levou o coração do capoeira. 

Desde então, todos os dias ele volta pra casa pelo mesmo caminho.  
       

sábado, 30 de março de 2013

Adorador


Ele sente o cheiro das velas acesas e isso o conforta. É noite e a penumbra daquela capela o tranquiliza, pois o seu dia foi agitado demais e desde pequeno nunca esqueceu do que seus avós lhe falavam sobre acreditar em algo por mais difíceis que as coisas fossem. Dimas era um homem de fé.

Morava no interior, onde a luz havia chegado há poucos anos. A escola quase não foi, não senhor. Mas nunca foi passado para trás em conta de balcão ou em compra de saca de feijão em caminhão. Era um jovem de espírito cansado, marcado pela perda prematura dos pais. Assim, achou em Deus e nos santos o colo que sempre lhe faltou. Participava de todas as quermesses, obras de caridade e procissões em homenagem ao padroeiro da cidade, São Benedito, e como se fosse à casa de um amigo querido e muito íntimo, todos os dias antes de ir para casa entrava para rezar o “Pai nosso de cada dia”, como ele mesmo gostava de dizer.

Era querido e conhecido de quase todos ali em Planalto, principalmente do povo que fazia parte do dia a dia da capelinha. Ao chegar na casa simples deixada pelos seus avós e que agora era sua, do silêncio e de alguns cachorros, Dimas costumava sentar na varanda e ficar contando as estrelas enquanto fumava o seu palheiro. Expelia seu cansaço misturado com a fumaça de cada baforada.

“Minha grande, minha pequena. Mulher minha. Não te quero mais assim, sozinha. Faço o que for por tua companhia. Amanhã mesmo irei ter com o teu pai e teus irmãos. Sou homem de bem. Trabalho e ganho o meu pão. Sou temente a Deus e do tinhoso não gosto, não. Desse aí que me valha, me guarde e me livre o meu São Benedito. Te dou teto, comida e todas as metades do meu coração, Maria Agripina.  Vem comigo de uma vez!”

Sentiu um beijo molhado no rosto e calor do sol rasgando sua cara e todo o resto da varanda. Era o sol alto no céu e a língua de Tião, o cachorro. Que Dimas ganhou e que já tinha esse nome. Tinha dormido e sonhado mais uma vez com ela. Acordou com a cabeça cheia e a barriga vazia.
  
A primeira coisa que resolveu fazer foi pegar uma fatia bem grossa do bolo de milho feito e dado de presente pela Dona Silvia, vizinha e doceira de mão cheia. O galo já tinha cantado há muito. Atrás de cada mordida na fatia vinha a mesma pergunta: “Por onde anda a Agripina?”

A 150 km uma menina de olhos redondos, de pele queimada pelo sol e cabelos negros, lisos, que fazia questão de usá-los soltos, pois gostava do vento que batia neles, penteava uma criança. Era Agripina e sua filha. A amiga de infância e paixão secreta de Dimas estava longe, casada e despreocupada. Tinha teto, comida, as metades do coração e da cama de Joca, que dizia ser vendedor ambulante, mas nunca tinha sido visto vendendo nada. As rodas de conversa na praça da cidadela de Consolação diziam que ele era um matador de aluguel. Sobre esse “boato de gente desocupada”, ele nunca deixou que Maria Agripina se inteirasse de fato.

O devoto de São Benedito nada sabia desse paradeiro. Não encontrando respostas no seu bolo, resolveu ir trabalhar. Enxada nas costas, chapéu na cabeça e poeira da estrada. No caminho encontrou Pedro, amigo de infância, que tinha uma proposta quase irrecusável a fazer para Dimas.

“Preciso de alguém que me ajude numa pescaria lá no rio de Consolação. Se você aceitar, fica com a metade dos peixes que pegarmos. Que tal?”

Sem nem pestanejar, Dimas aceitou o convite. Entrou na caminhonete e rumaram com destino aos peixes. No meio do caminho, ele lembrou que não passaria na capela. Teria que dar outro jeito de rezar hoje. Depois de quase duas horas de chão, ele e Pedro chegaram em Consolação.

Na entrada da cidade estava acontecendo uma grande feira. Que vendia compotas e artesanato feito pelas mulheres ribeirinhas.  Os rapazes pararam para ver mais daquela aglomeração de gente antes de seguirem para o rio. Dimas se aproximou de uma banca com a intenção de comprar uma compota de mamão para retribuir o presente de Dona Silvia. Ao perguntar o preço, uma menina se virou e disse “São cinco reais, moço”. Era ela. Dimas agradeceu em pensamento e prometeu de imediato uma vela ao seu amigo Benedito, não, duas...
“Agripina, lembra de mim? Dimas. Quanto tempo...”

“Dimas!! Oi! O que você tá fazendo aqui? Não tá mais em Planalto?”

“Vim com o Pedro fazer uma pescaria... Como você tá mudada... Tá bonita..”

“Obrigada, Dimas.”, em um tom envergonhado, mas sensível ao elogio.

“Andei pensando bastante em ti nesses dias . Olha só como é a vida...

“Olha Dimas... Se é o que eu to pensando, eu sou uma mulher casada. E outra, sempre vi você como um amigo. A gente foi praticamente criado juntos.”

Ele realmente não esperava que ela fosse ser tão direta. Ficou envergonhado. Não soube mais o que dizer. Tentou balbuciar algumas palavras, mas nada saia e nada mais fazia o mesmo sentido.

Depois dessa troca de palavras. Agripina não sairia mais da sua cabeça. Não havia peixe, piada pronta do amigo Pedro ou água de rio que fizesse Dimas esquecer a morena.

Após a próspera pescaria, Dimas e Pedro foram a um bar comemorar o feito. Já estava combinado que até venderiam uma parte do que haviam conseguido. Lá Pedro quis saber o motivo do jeito estranho do seu ajudante. Após esclarecimentos, o motorista não se fez de rogado, disse que conhecia o caminho para a casa de Joca e que levaria Dimas para dizer tchau a Agripina.

Com certeza o plano pareceu muito executável após alguns copos de cachaça. Partiram. Ao chegar a frente da casa de Maria Agripina, Dimas desceu da caminhonete transtornado. Sentia que tudo o que não pode falar ao longo de todos aqueles anos, devia ser falado naquele instante. Jogou seu chapéu longe, abriu os braços e gritou com toda a força.

“Agripina!! Me escuta. Sei que agora é muito tarde pra isso, mas eu queria que você soubesse que eu so..”
De dentro da casa veio o tiro. Dimas sentiu a dor e o calor da bala que entrou em seu peito. Agripina gritou, mas seu grito não ia voltar o que havia sido feito. Joca saiu correndo em direção ao mato. Nenhum vizinho abriu porta ou janela.

“A vida é assim. Às vezes não dá tempo de terminar a frase e todo mundo entende tudo errado. Tomara que hoje eu ainda consiga acender a minha vela pro senhor, meu São Benedito.”

quarta-feira, 27 de março de 2013

Voo



Olhou para a tela do computador da mesma forma que a olhava todos os dias. Como quem olha uma velha conhecida. Em meio a isso, ao fitar uma das imagens, pensou ter lembrado algo, desejou ter lembrado algo, mas o tempo e as lembranças dolorosas já eram tão comuns que não precisavam aparecer de súbito ou fantasiadas num deja vu qualquer, pois elas já eram dele.

Final de expediente, repartição vazia. Todos já tinham saído para o final de semana e para cuidar das suas vidas. Quando passavam, cumprimentavam com um aceno que ele podia ver ao levantar a cabeça da tela do computador. Retribuía o aceno com o tom respeitoso que lhe era característico.

“O Freitas é um funcionário esforçado. Sempre preocupado demais com as tarefas que lhe designam”, dizia o encarregado da supervisão do setor.

“Nunca vi o Freitas mexer com ninguém. As brincadeiras dele nunca ultrapassam os limites”, afirmava a Tânia, secretária e “amiga do peito” do Dr. Fernandes, manda-chuva daquelas bandas.

Enfim, o Freitas era um funcionário como outro qualquer, mas que contava com a simpatia da grande maioria. Há algum tempo, ele já vinha pensando em uma maneira de dar a guinada que precisava em sua vida.

Os últimos tempos tinham sido difíceis, porém, nosso amigo era um homem de brios e não se deixou abalar (ou não deixou que notassem). De qualquer forma, estava farto daqueles dias que não passavam, daquela mesmice e do barulho já irritante das folhas de papel que pareciam ser infinitas nas impressões intermináveis do escritório. Resolveu mudar. Seria naquela hora, não teria mais jeito, não dava mais pra agüentar aquilo tudo.

Sabia que o telefone não iria tocar de maneira alguma, pois desde a Denise ele já não tocava. Não da mesma forma.

Certificou-se de que não havia mais ninguém por perto. Para todos os efeitos, ele estaria fazendo hora extra. Levantou apressado e, aos poucos, foi aumentando o ritmo da passada em direção a janela. Não pensava em nada, somente em ser livre e em não se preocupar mais em ser só. Em morar só, em estar e sentir-se assim. Pensava em se livrar do trabalho chato e do barulho repetitivo e interminável.

Começou a correr. Nunca tinha percebido que a distância entre o seu computador e a janela era assim tão grande. Um dos resultados dessa corrida foi uma quantidade considerável de folhas de papel que acabaram caídas em função da velocidade que o Freitas precisava para completar seu plano.

Fechou os olhos e imaginou o céu. Mesmo sem asas, o funcionário mediano da Sá Cia. Industrial cruzou a janela e alçou voo, deixando para trás algumas contas, uma casa semi-mobiliada, alguns vinis que ganhou de herança do pai e um celular tocando em sua mesa.

A tela mostrava: Denise

Atender ou  Recusar?

segunda-feira, 25 de março de 2013

O novato


O trabalho definitivamente é mais duro do que me disseram quando cheguei aqui. Ouvi um “Não se preocupa! É tudo muito tranquilo. Teu turno é o mais calmo. Escolhemos a dedo pra você a tarefa. Garantimos que cê vai adorar. Seja bem vindo ao time, cara!”

Pois é. Fui enganado, com certeza. A galera dos Recursos Humanos não me passou todas as informações do que eu precisava fazer.  Ainda se fosse uma tarefa por pouco tempo, mas não. Não existem tarefas curtas nessa coisa. Tudo é “progresso a longo prazo”.

No dia em que foram me mostrar o meu parceiro e, sim, é esse o termo que eles usam para com quem trabalhamos embora hoje saiba que é muito duvidoso o termo, eu estava com muita curiosidade para conhecê-lo. Já haviam me adiantado que era um cara, aparentemente tranquilo, com boa saúde e um circulo de amizades razoável. Eu só tinha que ficar de olho nele. Moleza...

A apresentação não foi formal, pois elas nunca são formais nesse ramo. Apenas ficamos de longe vendo o que ele fazia. Era do tipo rato de biblioteca. Fazendo anotações e ajeitando freneticamente os óculos. Ia ser ótimo ficar no meio daqueles livros todos. Eu já não lembrava direito como era aquele tipo de ambiente.

No outro dia já estava sozinho com ele. Eu no comando de tudo. Eu estava muito orgulhoso de mim mesmo. Não tinha como dar errado. Durante duas semanas foi a mais perfeita calma. Ele trabalhava, comia, conversava, dormia. Tudo na mais perfeita ordem.

Até que meu parceiro começou a perder o sono. Tentei de toda forma ajudar a criatura, mas nada feito. Ele não pregava os olhos. Levantava da cama feito um trapo e ia como um zumbi para o trabalho. Depois do expediente passava o resto do tempo na tal biblioteca. Eu já estava muito entediado. Aquele definitivamente não era o tipo de coisa para a qual eu havia estudado.

Eu não entendia o que estava dando errado com ele. Ia para o escritório todos os dias antes do horário para checar os arquivos dele, ver se tudo estava certo e se era aquilo mesmo e aparentemente era ele o designado para trabalhar comigo. Tentei conversar com os mais experientes nos intervalos e nas pausas para o café. Eles me diziam que às vezes isso acontecia mesmo, que era natural. Tudo era uma questão de adaptação minha com ele. Resolvi relaxar e ver o que acontecia dali em diante.

Um dia como outro qualquer e nós na biblioteca, trancafiados lá. Eu folheando um livro que tentava explicar as causas da insônia, ele com a cara enterrada no computador. De repente, senti uma presença diferente. Ao levantar os olhos do capítulo sobre a atividade cerebral durante a madrugada. Vi que ele também estremeceu e pensei

“Ah não. Não pode ser... então é por isso que você tá assim? Tá, vamos embora daqui. Deixa isso pra lá. Muito perigoso. Tu não anda em condições, garotão”

Ele não me respondia. Só ficou lá babando em cima da bibliotecária, que definitivamente nem notava sua existência. Acredita?

Resolvi intervir no caso do coitado. Afinal, era meu trabalho. Ele de súbito, teve um ataque de tosse e ela ao se aproximar para dar a maior bronca no rapaz. Resolveu notá-lo e expulsá-lo da biblioteca. Eu bem que tentei, né? Mas não deu muito certo. Meu parceiro ficou inconsolável, coitado.

É, amigo. Eu bem que tentei, mas era o meu primeiro parceiro. Isso foi há um tempo. Hoje, sou um anjo da guarda com mais experiência. Tenho até carteira e especializações! Ô amizade, traz um cortado aí, por favor, e um prensado!!