“Para mim, cada cidade é um porto. Um lugar por onde passo e
só. Ás vezes me imagino como algum marinheiro do asfalto, um viajante de todo
lugar, mas de lugar nenhum”, disse ele como quem joga a rede e espera paciente
o peixe que se descuidará e entrará no meio do emaranhado de fios. Luan tinha
boas ideias. Hoje, ele “conversava”, como o próprio gostava de definir para os
amigos, mais por esporte que por outro motivo. “Você viaja muito?”, perguntou a
menina morena de rosto arredondado e olhos escuros que pagava as ameixas no
caixa da fruteira. Pronto. Agora era só puxar a rede. “Claro! Tenho muitas
histórias de viagem. Quer ouvir mais?”
Ela sorriu, pegou a sacola de frutas e disse um tchau que
segundo a definição do dicionário de ironias da civilização, codificado depois
da descoberta dos Jardins Suspensos da Babilônia e do Código de Hamurabi,
queria dizer “Que papinho sem graça! Eu, hein... ”, que ainda segundo o mesmo
livro significa: “Aquela retórica que é proferida em um lugar impróprio e é
execrada cordialmente pelo interlocutor”.
Enquanto isso entre as maçãs argentinas e a caixa de
carambolas, mirando o espelho posicionado de maneira muito criativa em cima das
frutas para que se tenha uma ilusão de ótica de maior quantidade de produtos,
outro peixe havia sido fisgado sem nem ao menos ser considerado pelo pescador.
Alice conhecia Luan desde a época das aulas de canto. Aulas estas que ele
odiava, mas fora matriculado por insistência de tia Albertina, a soprano da
família que costumava se apresentar em bingos beneficentes e jantares do Lions
Club, uma sociedade semi-secreta onde a nata da maturidade abastada da cidade
se reúne para expor sua burguesia e organização sem medo de represálias.
Voltando a Alice, ela sempre gostou de Luan. Achava-o
bonitinho, com boa voz, etc, etc. Já ele, só queria saber de cantar Tim Maia em
inglês. O que foi um dos grandes desafios de sua adolescência.
“We gonna rule the world
Don’t you know? Don’t you know?..”
E sim, a fase “racional” do velho Tim era a sua preferida.
Ela odiava, mas nem ligava, era ligada no estilo dele e em seu groove ao interpretar. Hoje era o dia.
Ia ser agora. Ele ia notá-la!
“Oi... eu estava ali escolhendo umas carambolas e não pude
deixar de ouvir, você é um viajante? Sério? Eu gostaria muito de ouvir as tuas
histórias.. bom... a gente nem se conhece, né? Nossa, que vergonha! Eu sou a
Alice, prazer..”
“Hãmm.... ah...oi... Eu...Meu nome é...Luan...”
O cantor de outrora não se sentiu confortável com aquela
situação e acabou por dizer qualquer coisa para a menina, sorriu com educação,
disse que contaria mais sobre suas viagens, com todo o prazer, mas havia
lembrado que hoje tinha algo importantíssimo para fazer. E foi embora.
Deixando Alice absorta em seu mundo de frustrações, entre os brócolis e as
couves-flores.
“Os homens têm medo da paixão/Ela fere, ela mata/como um
dragão”
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