sábado, 30 de março de 2013

Adorador


Ele sente o cheiro das velas acesas e isso o conforta. É noite e a penumbra daquela capela o tranquiliza, pois o seu dia foi agitado demais e desde pequeno nunca esqueceu do que seus avós lhe falavam sobre acreditar em algo por mais difíceis que as coisas fossem. Dimas era um homem de fé.

Morava no interior, onde a luz havia chegado há poucos anos. A escola quase não foi, não senhor. Mas nunca foi passado para trás em conta de balcão ou em compra de saca de feijão em caminhão. Era um jovem de espírito cansado, marcado pela perda prematura dos pais. Assim, achou em Deus e nos santos o colo que sempre lhe faltou. Participava de todas as quermesses, obras de caridade e procissões em homenagem ao padroeiro da cidade, São Benedito, e como se fosse à casa de um amigo querido e muito íntimo, todos os dias antes de ir para casa entrava para rezar o “Pai nosso de cada dia”, como ele mesmo gostava de dizer.

Era querido e conhecido de quase todos ali em Planalto, principalmente do povo que fazia parte do dia a dia da capelinha. Ao chegar na casa simples deixada pelos seus avós e que agora era sua, do silêncio e de alguns cachorros, Dimas costumava sentar na varanda e ficar contando as estrelas enquanto fumava o seu palheiro. Expelia seu cansaço misturado com a fumaça de cada baforada.

“Minha grande, minha pequena. Mulher minha. Não te quero mais assim, sozinha. Faço o que for por tua companhia. Amanhã mesmo irei ter com o teu pai e teus irmãos. Sou homem de bem. Trabalho e ganho o meu pão. Sou temente a Deus e do tinhoso não gosto, não. Desse aí que me valha, me guarde e me livre o meu São Benedito. Te dou teto, comida e todas as metades do meu coração, Maria Agripina.  Vem comigo de uma vez!”

Sentiu um beijo molhado no rosto e calor do sol rasgando sua cara e todo o resto da varanda. Era o sol alto no céu e a língua de Tião, o cachorro. Que Dimas ganhou e que já tinha esse nome. Tinha dormido e sonhado mais uma vez com ela. Acordou com a cabeça cheia e a barriga vazia.
  
A primeira coisa que resolveu fazer foi pegar uma fatia bem grossa do bolo de milho feito e dado de presente pela Dona Silvia, vizinha e doceira de mão cheia. O galo já tinha cantado há muito. Atrás de cada mordida na fatia vinha a mesma pergunta: “Por onde anda a Agripina?”

A 150 km uma menina de olhos redondos, de pele queimada pelo sol e cabelos negros, lisos, que fazia questão de usá-los soltos, pois gostava do vento que batia neles, penteava uma criança. Era Agripina e sua filha. A amiga de infância e paixão secreta de Dimas estava longe, casada e despreocupada. Tinha teto, comida, as metades do coração e da cama de Joca, que dizia ser vendedor ambulante, mas nunca tinha sido visto vendendo nada. As rodas de conversa na praça da cidadela de Consolação diziam que ele era um matador de aluguel. Sobre esse “boato de gente desocupada”, ele nunca deixou que Maria Agripina se inteirasse de fato.

O devoto de São Benedito nada sabia desse paradeiro. Não encontrando respostas no seu bolo, resolveu ir trabalhar. Enxada nas costas, chapéu na cabeça e poeira da estrada. No caminho encontrou Pedro, amigo de infância, que tinha uma proposta quase irrecusável a fazer para Dimas.

“Preciso de alguém que me ajude numa pescaria lá no rio de Consolação. Se você aceitar, fica com a metade dos peixes que pegarmos. Que tal?”

Sem nem pestanejar, Dimas aceitou o convite. Entrou na caminhonete e rumaram com destino aos peixes. No meio do caminho, ele lembrou que não passaria na capela. Teria que dar outro jeito de rezar hoje. Depois de quase duas horas de chão, ele e Pedro chegaram em Consolação.

Na entrada da cidade estava acontecendo uma grande feira. Que vendia compotas e artesanato feito pelas mulheres ribeirinhas.  Os rapazes pararam para ver mais daquela aglomeração de gente antes de seguirem para o rio. Dimas se aproximou de uma banca com a intenção de comprar uma compota de mamão para retribuir o presente de Dona Silvia. Ao perguntar o preço, uma menina se virou e disse “São cinco reais, moço”. Era ela. Dimas agradeceu em pensamento e prometeu de imediato uma vela ao seu amigo Benedito, não, duas...
“Agripina, lembra de mim? Dimas. Quanto tempo...”

“Dimas!! Oi! O que você tá fazendo aqui? Não tá mais em Planalto?”

“Vim com o Pedro fazer uma pescaria... Como você tá mudada... Tá bonita..”

“Obrigada, Dimas.”, em um tom envergonhado, mas sensível ao elogio.

“Andei pensando bastante em ti nesses dias . Olha só como é a vida...

“Olha Dimas... Se é o que eu to pensando, eu sou uma mulher casada. E outra, sempre vi você como um amigo. A gente foi praticamente criado juntos.”

Ele realmente não esperava que ela fosse ser tão direta. Ficou envergonhado. Não soube mais o que dizer. Tentou balbuciar algumas palavras, mas nada saia e nada mais fazia o mesmo sentido.

Depois dessa troca de palavras. Agripina não sairia mais da sua cabeça. Não havia peixe, piada pronta do amigo Pedro ou água de rio que fizesse Dimas esquecer a morena.

Após a próspera pescaria, Dimas e Pedro foram a um bar comemorar o feito. Já estava combinado que até venderiam uma parte do que haviam conseguido. Lá Pedro quis saber o motivo do jeito estranho do seu ajudante. Após esclarecimentos, o motorista não se fez de rogado, disse que conhecia o caminho para a casa de Joca e que levaria Dimas para dizer tchau a Agripina.

Com certeza o plano pareceu muito executável após alguns copos de cachaça. Partiram. Ao chegar a frente da casa de Maria Agripina, Dimas desceu da caminhonete transtornado. Sentia que tudo o que não pode falar ao longo de todos aqueles anos, devia ser falado naquele instante. Jogou seu chapéu longe, abriu os braços e gritou com toda a força.

“Agripina!! Me escuta. Sei que agora é muito tarde pra isso, mas eu queria que você soubesse que eu so..”
De dentro da casa veio o tiro. Dimas sentiu a dor e o calor da bala que entrou em seu peito. Agripina gritou, mas seu grito não ia voltar o que havia sido feito. Joca saiu correndo em direção ao mato. Nenhum vizinho abriu porta ou janela.

“A vida é assim. Às vezes não dá tempo de terminar a frase e todo mundo entende tudo errado. Tomara que hoje eu ainda consiga acender a minha vela pro senhor, meu São Benedito.”

quarta-feira, 27 de março de 2013

Voo



Olhou para a tela do computador da mesma forma que a olhava todos os dias. Como quem olha uma velha conhecida. Em meio a isso, ao fitar uma das imagens, pensou ter lembrado algo, desejou ter lembrado algo, mas o tempo e as lembranças dolorosas já eram tão comuns que não precisavam aparecer de súbito ou fantasiadas num deja vu qualquer, pois elas já eram dele.

Final de expediente, repartição vazia. Todos já tinham saído para o final de semana e para cuidar das suas vidas. Quando passavam, cumprimentavam com um aceno que ele podia ver ao levantar a cabeça da tela do computador. Retribuía o aceno com o tom respeitoso que lhe era característico.

“O Freitas é um funcionário esforçado. Sempre preocupado demais com as tarefas que lhe designam”, dizia o encarregado da supervisão do setor.

“Nunca vi o Freitas mexer com ninguém. As brincadeiras dele nunca ultrapassam os limites”, afirmava a Tânia, secretária e “amiga do peito” do Dr. Fernandes, manda-chuva daquelas bandas.

Enfim, o Freitas era um funcionário como outro qualquer, mas que contava com a simpatia da grande maioria. Há algum tempo, ele já vinha pensando em uma maneira de dar a guinada que precisava em sua vida.

Os últimos tempos tinham sido difíceis, porém, nosso amigo era um homem de brios e não se deixou abalar (ou não deixou que notassem). De qualquer forma, estava farto daqueles dias que não passavam, daquela mesmice e do barulho já irritante das folhas de papel que pareciam ser infinitas nas impressões intermináveis do escritório. Resolveu mudar. Seria naquela hora, não teria mais jeito, não dava mais pra agüentar aquilo tudo.

Sabia que o telefone não iria tocar de maneira alguma, pois desde a Denise ele já não tocava. Não da mesma forma.

Certificou-se de que não havia mais ninguém por perto. Para todos os efeitos, ele estaria fazendo hora extra. Levantou apressado e, aos poucos, foi aumentando o ritmo da passada em direção a janela. Não pensava em nada, somente em ser livre e em não se preocupar mais em ser só. Em morar só, em estar e sentir-se assim. Pensava em se livrar do trabalho chato e do barulho repetitivo e interminável.

Começou a correr. Nunca tinha percebido que a distância entre o seu computador e a janela era assim tão grande. Um dos resultados dessa corrida foi uma quantidade considerável de folhas de papel que acabaram caídas em função da velocidade que o Freitas precisava para completar seu plano.

Fechou os olhos e imaginou o céu. Mesmo sem asas, o funcionário mediano da Sá Cia. Industrial cruzou a janela e alçou voo, deixando para trás algumas contas, uma casa semi-mobiliada, alguns vinis que ganhou de herança do pai e um celular tocando em sua mesa.

A tela mostrava: Denise

Atender ou  Recusar?

segunda-feira, 25 de março de 2013

O novato


O trabalho definitivamente é mais duro do que me disseram quando cheguei aqui. Ouvi um “Não se preocupa! É tudo muito tranquilo. Teu turno é o mais calmo. Escolhemos a dedo pra você a tarefa. Garantimos que cê vai adorar. Seja bem vindo ao time, cara!”

Pois é. Fui enganado, com certeza. A galera dos Recursos Humanos não me passou todas as informações do que eu precisava fazer.  Ainda se fosse uma tarefa por pouco tempo, mas não. Não existem tarefas curtas nessa coisa. Tudo é “progresso a longo prazo”.

No dia em que foram me mostrar o meu parceiro e, sim, é esse o termo que eles usam para com quem trabalhamos embora hoje saiba que é muito duvidoso o termo, eu estava com muita curiosidade para conhecê-lo. Já haviam me adiantado que era um cara, aparentemente tranquilo, com boa saúde e um circulo de amizades razoável. Eu só tinha que ficar de olho nele. Moleza...

A apresentação não foi formal, pois elas nunca são formais nesse ramo. Apenas ficamos de longe vendo o que ele fazia. Era do tipo rato de biblioteca. Fazendo anotações e ajeitando freneticamente os óculos. Ia ser ótimo ficar no meio daqueles livros todos. Eu já não lembrava direito como era aquele tipo de ambiente.

No outro dia já estava sozinho com ele. Eu no comando de tudo. Eu estava muito orgulhoso de mim mesmo. Não tinha como dar errado. Durante duas semanas foi a mais perfeita calma. Ele trabalhava, comia, conversava, dormia. Tudo na mais perfeita ordem.

Até que meu parceiro começou a perder o sono. Tentei de toda forma ajudar a criatura, mas nada feito. Ele não pregava os olhos. Levantava da cama feito um trapo e ia como um zumbi para o trabalho. Depois do expediente passava o resto do tempo na tal biblioteca. Eu já estava muito entediado. Aquele definitivamente não era o tipo de coisa para a qual eu havia estudado.

Eu não entendia o que estava dando errado com ele. Ia para o escritório todos os dias antes do horário para checar os arquivos dele, ver se tudo estava certo e se era aquilo mesmo e aparentemente era ele o designado para trabalhar comigo. Tentei conversar com os mais experientes nos intervalos e nas pausas para o café. Eles me diziam que às vezes isso acontecia mesmo, que era natural. Tudo era uma questão de adaptação minha com ele. Resolvi relaxar e ver o que acontecia dali em diante.

Um dia como outro qualquer e nós na biblioteca, trancafiados lá. Eu folheando um livro que tentava explicar as causas da insônia, ele com a cara enterrada no computador. De repente, senti uma presença diferente. Ao levantar os olhos do capítulo sobre a atividade cerebral durante a madrugada. Vi que ele também estremeceu e pensei

“Ah não. Não pode ser... então é por isso que você tá assim? Tá, vamos embora daqui. Deixa isso pra lá. Muito perigoso. Tu não anda em condições, garotão”

Ele não me respondia. Só ficou lá babando em cima da bibliotecária, que definitivamente nem notava sua existência. Acredita?

Resolvi intervir no caso do coitado. Afinal, era meu trabalho. Ele de súbito, teve um ataque de tosse e ela ao se aproximar para dar a maior bronca no rapaz. Resolveu notá-lo e expulsá-lo da biblioteca. Eu bem que tentei, né? Mas não deu muito certo. Meu parceiro ficou inconsolável, coitado.

É, amigo. Eu bem que tentei, mas era o meu primeiro parceiro. Isso foi há um tempo. Hoje, sou um anjo da guarda com mais experiência. Tenho até carteira e especializações! Ô amizade, traz um cortado aí, por favor, e um prensado!!

sábado, 23 de março de 2013

Também


Chove. Porque nada pode ser mais clichê do que um belo começo de uma noite chuvosa. Ainda não é bem noite, mas uma tardinha. As ruas tem aqueles espelhos d’água que fazem as poças e com elas aquela ilusão de ótica das gotas que se dissolvem imediatamente pra formar-se parte da água já presa ao chão e já não tão sagrada assim.

É possível ver a multidão de guarda-chuvas deslizando ao longe e por todos os lados. Algo interessante sobre a chuva é que ficamos naturalmente apressados debaixo dela o que explica os esbarrões e a quantidade considerável de guarda-chuvas tortos que se pode ver por aí.

Mas hoje, o que me preocupa não é se vou chegar molhado ou não em casa. Talvez um pouco isso, sim. 

Odeio ficar molhado, faz frio e meu carro ainda está no conserto. Mas o que realmente me preocupa hoje é que depois de muito ficar olhando pela janela e pensando no que dizer. Vou me declarar.

Eu sei, eu sei. Isso parece muito anos 50 pro gosto de muita gente que acha isso uma babaquice. Hoje em dia, em plena era do “tudo num clique” ficar se preocupando com declarações de amor pode parecer muita perda de tempo. Sinceramente, não me importo muito com o que meus amigos falam. Estou decidido.

Pego o elevador sozinho e o espelho me mostra. Não gosto muito do que vejo. Nunca fui fotogênico. Tenho meia hora até chegar onde ela trabalha. Apresso um pouco o passo. Preciso chegar a tempo.

Ao ver a rua movimentada e com todos indo e vindo, resolvo checar meus bolsos. Foi quando percebi que tinha esquecido o bilhete que escrevi. E agora? Não estava nem um pouco afim de voltar. Sigo sem bilhete mesmo.

A caminho do prédio penso em muita coisa. No meu carro, que seria tão útil hoje. No que será que aconteceria, pois tenho um transtorno muito chato de tentar ficar adivinhado o futuro. Isso é chato por eu não ter poder psíquico algum então eu só serviria para charlatão mesmo.  Penso em ser eu mesmo, mas não tenho certeza se isso funciona.

De repente ela surge na porta do prédio, o que me traz à superfície do mar de pensamentos no qual eu estava. Também noto que estou bem molhado. Droga! Ela fica surpresa em me ver por ali e diz que está um pouco apressada, se eu quiser posso acompanhá-la até o seu carro no estacionamento para um papo melhor e mais longo.

Percebi uma oportunidade melhor do que a que eu esperava. Aceitei o convite. Ela começou a falar do dia estressante, das reuniões, prazos, exigências e blá bla´blá blá blá e eu já não a ouvia mais, só imaginava os próximos momentos. Senti como se fosse o jogador prestes a bater o pênalti mais decisivo de qualquer Copa do Mundo dessas que já aconteceram em qualquer época ou também o cara que tem o alicate que vai cortar o fio vermelho (sempre é o vermelho) que desativa a bomba que estaria prestes a matar todo mundo no filme e como todo o filme que se preze, ganha a mocinha no fim. Corri em direção a bola com o alicate nas mãos. Toda a torcida presente cruzou os dedos, atenta....

“Preciso te dizer uma coisa. Faz um tempo já.”

“Hm... Fala, mas eu tenho cinco minutos só. Se é sobre o meu aniversário, se você não puder ir não tem problema.”

“Não é isso. É que...... Eu te amo.”

“...”

“Eu não precisei de muito tempo pra notar isso. Gosto de tudo em você e quero uma chance. Acho que podemos ser muito felizes juntos. Acho que todos nossos amigos já sabem disso. Só faltava você mesmo. Você não acredita quanto tempo eu levei para criar coragem para te dizer isso. Te amo, muito. ”

Ela não fica tão sem jeito quanto eu esperava. A torcida estranha..

“ Eu... também...”  

“Também o que?”

“Também gosto de você...”

Viro as costas e vou embora com um número de telefone no bolso, um beijo burocrático e um também ressoando na cabeça.

Bola fora e fio verde cortado

segunda-feira, 18 de março de 2013

Usina da alegria



Era uma vez uma cidade.

Uma cidade como outra qualquer. Com as coisas que todas as cidades tem em comum. Sejam elas boas ou ruins. Era assim. Não muito diferente à primeira vista.

Fora a sua usina elétrica. Ah, essa sim era muito interessante, pois nessa cidade não havia luz se não houvesse alegria e risos o suficiente para abastecer em um nível suficientemente bom o reservatório onde tudo era convertido em energia elétrica.

Nova Esperança era uma cidade que não ria. Quando muito, ria amarelo como quem ri para não perder o amigo. Então, o prefeito, ex-palhaço de circo, resolveu investir pesado em um jeito de ver o seu povo mais alegre e sem perder de vista os futuros votos da próxima eleição. Buscou os melhores artistas: Palhaços, malabaristas, equilibristas, ventríloquos e comediantes. Custeava shows todas as noites. Tudo regado a muita comida e bebida. Os esperançosos ficaram surpresos com a iniciativa.

“Isso sim que é incentivo a cultura e ao bem-estar”, muitos diziam. Outros ainda exaltavam a bondade do prefeito e a sua preocupação com as crianças, que adoravam todo aquele clima.

Enquanto isso os reservatórios da usina transbordavam os níveis de alegria. Em cada palco em que aconteciam as apresentações, captadores eram posicionados estratégicamente como se fossem receptores de som. Eles ‘sugavam’ a alegria e os risos do público e os enviavam por tubulações subterrâneas para o processo de conversão em eletricidade.

O sucesso da decisão foi estrondoso. Imprensa e governantes de muitas cidades da região vieram ver se era possível se espelhar no projeto de Nova Esperança. O prefeito, no entanto, não se mostrava muito solícito em ajudar seus visitantes, nem em dar dicas de como isso seria feito em outros lugares.

“Creio que não seria possível eu deixar todo o meu segredo para vocês”, afirmava ele entre risos sem graça.

Os homens saiam intrigados e contrariados da visita diplomática. De mãos vazias e com a curiosidade cheia. Querendo saber mais sobre aquele sistema e por que não encontravam colaboração para reproduzir o projeto.

Ninguém pagava conta de luz. A alegria era de todos e devia ser compartilhada, assim, de graça. Era o que diziam os outdoors na entrada da cidade. Ganhou o apelido de “Cidade-sorriso”. Quem diria!

Para afastar ainda mais o risco de um dia voltar a contribuir com tarifas de energia, os esperançosos toparam a proposta do prefeito de instalar captadores de riso em domicílio. Não pensaram duas vezes.

A instrução era que os moradores pusessem os aparelhos, bem menores que os utilizados nos shows diários, na peça da casa em que mais passavam tempo. Assim, seria mais fácil obter a energia necessária.

Tudo sairia perfeito a não ser por um problema. Os esperançosos se acostumaram com todo aquele entretenimento e, por alguma razão, ele já não satisfazia.

Aos poucos, a cidade começou a não encher mais seus reservatórios de riso e alegria e já não era raro Nova Esperança sofrer apagões bem na hora do beijo apaixonado da novela ou da revelação de quem tinha matado quem. O que deixava muita gente irritada e, portanto, longe do objetivo inicial.

Os bondes e trens já não funcionavam. O prefeito não dormia mais pensando em uma maneira de resolver o problema

Sua oposição partidária fazia duras críticas ao seu governo citando suas ‘irresponsabilidades para com o povo esperançoso’ aos quatro ventos.

Pouco tempo depois, foi destituído do cargo e a usina foi fechada e substituída por equipamentos comuns.

Isso é uma história antiga, mas ainda hoje é possível ver o ex-prefeito fazendo malabarismos e apresentações em alguns clubes. A única exigência que ele faz é a placa na frente do estabelecimento.

“Acende-se a luz do sorriso.”            

domingo, 17 de março de 2013

Festa


O salão iluminado e cheio alegrava os corações do Conde e da Condessa. Há tempos eles não davam um baile tão grandioso. Desde que um segredo decidiu se instalar em seu leito.

Mesas enormes repletas das frutas mais frescas, dos doces feitos pelos melhores confeiteiros da cidade e das carnes mais suculentas estavam à disposição dos convidados que vieram de todas as partes para testemunhar o triunfal retorno do casal a vida social.

Antes disso, fizeram uma longa viagem e mantiveram a mansão fechada durante meses. Hoje, tudo isso fora esquecido, pois a música e a sincronia dos casais executando as danças encantavam muito mais que possíveis dúvidas.

A Condessa havia mandado preparar toda a decoração e a comida com o máximo de esmero. Seu vestido, feito com a melhor seda. Não tinha descido ainda para onde a festa acontecia. Do andar de cima, olhava tudo atentamente procurando decifrar nos rostos dos casais se suas expectativas tinham sido alcançadas. Se eles estavam tão estupefatos com a imponência da festa quanto ela pensava que ficariam.

Alianças políticas. Só isso passava pela cabeça do Conde. A todo instante, entravam mais e mais homens influentes. Se a festa saísse do jeito que ele esperava, logo ele estaria dentro de um círculo digno dos homens mais importantes do lugar.

Desceram juntos e ao aparecer na escadaria da mansão foram muito aplaudidos por todos. Apertos de mão moderados, abraços socialmente mornos e beijos recheados com pose forma distribuídos ao longo de todo o salão pelos anfitriões.

Mas nem todos estavam contentes. Prejudicados numa compra de terreno pelos donos da festa, faziam questão de espalhar ao pé do ouvido, que o Conde e a Condessa já não tinham dinheiro e investiram todo o resto que havia lhes sobrado para aquela última tentativa desesperada de voltar às altas rodas.

O boato se espalhou como um rastilho de pólvora. Ao notarem os cochichos, o casal ordenou para seus serviçais mais leais e já de sobreaviso, que fechassem todas as portas e janelas da casa e que pusessem as chaves fora. Estavam dispensados do serviço assim que cada saída estivesse trancada pelo lado de fora.

O Conde e a Condessa desapareceram deixando para trás suas dívidas e uma festa que teria hora certa para acabar.

Café


Tudo o que eu preciso agora é de um café quente e de uma caminhada na rua fria.

A sala já não me comporta mais. A televisão não entretém. Nem o ópio do futebol me mantém.

O casaco está no cabide e as chaves no bolso.  Me visto com uma pressa de quem realmente estaria perdendo algo importante. Mas é domingo e dias assim nunca são importantes para todo mundo a não ser que seja Dia dos Pais, Mães ou Páscoa. Hoje não é nada disso.

Não penso ao colocar a chave na porta de casa, destravar o trinco e ganhar a rua. Logo na saída, senti o arrependimento de quem não pegou um cachecol, pois o vento era cortante e frio, tal qual o olhar dos meus vizinhos ou da Marcinha, meu desamor da sétima série que algum tempo depois descobri não ser a única com essa capacidade congelante.

Passo após passo eu olho as fachadas dos prédios. Elas me lembram qualquer cidade fantasma de qualquer livro que já foi ou ainda será escrito

Não há barulho porque todos estão tão atarefados com suas modorrices que esquecem que são parte da vida desse lugar. Dobro a esquina da quadra onde moro. O café mais gostoso desse bairro fica logo à frente.

Sou pego de surpresa ao perceber que hoje o bar não abriu. Quê será que aconteceu?  

Ao caminhar mais um pouco, fui abordado por um senhor de barbas brancas que me pediu fogo. Respondi que não tinha e fui provavelmente xingado em um idioma que não conheço. Mesmo sem entender, o ataque não foi bonito nem educado.

Após experimentar o azedume dominical do meu bairro, e sem nenhum café, me dirijo de volta para casa. 

Minha garganta incomoda e lembro de novo do meu cachecol e penso como essa expedição seria mais fácil com ele.

Seguindo pela calçada sinto um aroma forte. É café. Mas não me espanto e sigo em frente rumo a minha casa.

Entro. Ligo o rádio e abro um pacote de balas...de café.

terça-feira, 12 de março de 2013

Faz de conta



Espero aqui, parado e alerta. Entardece e eu também. Quem dera.

Estar em casa, sem porta aberta, mente desperta. Espaço meu.

Mas preferi ficar à espreita, fazendo a ronda, esperando acontecer.

Sem armadura brilhante. Sem lança ou espada em punho.

Somente a atenção afiada.

No chegar de uma carruagem que traz uma princesa atarefada. Talvez um pouco cansada, mas que me alegre ao fim de tudo.

E me leve pro reino do faz de conta de vez em quando.

Num mar de olhos mirando o nada, Eis que surge num par de lentes escuras, se achega em meus braços.

Embarcamos no primeiro vapor rumo a seja lá o que for.   

domingo, 10 de março de 2013

Close


O retrato pendurado na parede deixou só a marca do tempo que ficou ali, nada mais. Bilhetes ficam sempre espalhados pelo chão, pois tenho a mania de fazê-los e me convencer que eles  nunca ficam do jeito que eu quero.

Alguns acabam indo fora, com tudo o que estava neles.

“Leite, arroz, açúcar, shampoo...”.

“Quais os cinco países mais bem estruturados economicamente da Escandinávia?”

“Sugestões de leitura: ‘Amor Líquido’, ‘O Apanhador no campo de centeio’”.

Se um dia eu estivesse contigo, seria muito mais .....”

Recentemente os troquei por outro estilo de bilhete. Os de cinema. Esses sim são muito mais bem resolvidos que os meus.

Lá, descobri que esses novos amigos me mostraram algo que eu nunca tinha visto: O encanto da tela.

A hora da espera na antesala, ou mesmo na fila. Os convites que faço e recebo para sempre voltar e assistir o que quer que seja. Acabei virando o artista principal outra vez.

Sem coadjuvantes, sou diretor, roteirista e às vezes dublê quando tudo parece perigoso demais.

No close final, todos esperam que haja cena típica ou beijo na mocinha. A tela vai se fechando aos poucos e o foco ao invés de ir para o casal apaixonado, mostra o bilhete que estava ainda no bolso do nosso herói:

“Vai em frente. Se não for por vocês dois, que seja pela gente”.


Sobre uma pessoa só


Bobagem dizer que andava sozinho. Isso nem ao menos é uma maneira de começar a escrever qualquer coisa que seja. Todos andamos sozinhos na maioria do tempo. Em sentido literal...

Recomeçando. Passava a maior parte do tempo sozinho. A cidade, muito grande. Fazia com que esse sentimento só se agravasse. As ruas cheias de gente caminhando pra todo lado não melhorava esse quadro.

Sonhava em estar em ruas bem menos urbanas, menos movimentadas e mais iluminadas, mas seu cotidiano enfumaçado pelos coletivos apressados fazia com que ele quase sempre esquecesse desse desejo.

Acordando cedo e dormindo tarde. Quê tinha mesmo de comprar no açougue? Passar no banco, ver o que ainda me sobrou do mês. Que vida!

Gostava quando chovia. Nem se importava que o resto da cidade ficasse um caos. Sua vida se enchia de graça, pois desde cedo aprendeu a ficar vendo a chuva na janela da casa da Vó Laura. Quando menino gastava as tardes com barquinhos de papel. Confeccionando-os. Alguns guardava para o próximo dia de maré-cheia;  outros, soltava livre nas correntezas dos meios-fios.

Crescido, esqueceu do encanto das tardes. As substituiu por canecas, cafés, papeis (estes muito mais importantes e burocráticos). A vida de adulto o engoliu tal um monstro marinho.

Não tinha tempo de ter tempo. Tudo estava na sua agenda. Até as visitas a mãe. Sentia falta de algo diferente, mas igual a ele.

Vinha olhando pra baixo, concentrada em algo ou talvez distraída. Nesse mesmo instante, ele sentiu que não precisava mais andar sozinho, nem queria. Ela, achou que podia se concentrar em mais alguma coisa.

Começaram a andar a sos...

domingo, 3 de março de 2013

Sorte


De todas as características de Pedro, a principal, que sempre o acompanhou, era a sorte.

Desde o início de sua adolescência, ele já havia ganhado inúmeros concursos, sorteios, rifas escolares e brindes de feiras de igreja. Toda a sua família comentava da incrível sorte do menino. Coisa de outro mundo, que parecia não ter fim.  Parecia mesmo.

Sabe aquelas coisas que só acontecem em filme? Andar nas ruas e encontrar cédulas já era o trivial para ele. Em sua casa, ele acumulava prêmios. O quarto de Pedro foi mobiliado graças a uma boa quantia em dinheiro vinda de uma raspadinha. Daquelas que todo mundo tenta, mas que ninguém consegue nada por achar ridículo demais e improvável demais.

O sortudo achava tudo isso o máximo, embora essa sua maré cheia fosse segredo de estado entre seus familiares.

Escapou de acidentes. Nunca ficava doente e, no máximo, tinha uma gripe aqui outra ali.  A sorte era muito grande.

Ganhou uma viagem de presente em um concurso de redação. Não enviou a tempo seus escritos, mas seu cadastro foi sorteado inexplicavelmente. Em função disso, foi conhecer São Paulo com as despesas pagas e ainda foi apresentado ao mais novo semi-escritor conhecido da atualidade. Que alegria!

Mas igual a todas as coisas quando superexpostas e superexploradas, elas vão gastando e se tornando comuns. Pedro começou a achar aquela coisa de sempre ter sorte muito chata, pois quando ouvia as pessoas falarem de azar não sabia o que dizer ou pensar porque nunca tinha passado nem perto da falta de sorte, mesmo que mínima. Um dia começou a pensar em um jeito de pescar o azar, nem que fosse à unha.

Foi para a Internet. Tentou pesquisar em ‘simpatias’, mas geralmente elas são para obter sorte, não o oposto. Estava difícil. Não achava saída para conseguir sentir o gostinho do azar.

Após muitas tentativas e considerações sobre como fazer para não ser mais tão afortunado, o desespero começou a tomar conta do rapaz. Como último recurso, resolveu atravessar a avenida mais movimentada da cidade sem olhar para os lados e em alta velocidade.

O resultado veio em forma de lógica e em forma de ônibus sentido bairro-centro.

O acelerador do coletivo falhou e o quase azarado teve escoriações leves.