quarta-feira, 27 de março de 2013

Voo



Olhou para a tela do computador da mesma forma que a olhava todos os dias. Como quem olha uma velha conhecida. Em meio a isso, ao fitar uma das imagens, pensou ter lembrado algo, desejou ter lembrado algo, mas o tempo e as lembranças dolorosas já eram tão comuns que não precisavam aparecer de súbito ou fantasiadas num deja vu qualquer, pois elas já eram dele.

Final de expediente, repartição vazia. Todos já tinham saído para o final de semana e para cuidar das suas vidas. Quando passavam, cumprimentavam com um aceno que ele podia ver ao levantar a cabeça da tela do computador. Retribuía o aceno com o tom respeitoso que lhe era característico.

“O Freitas é um funcionário esforçado. Sempre preocupado demais com as tarefas que lhe designam”, dizia o encarregado da supervisão do setor.

“Nunca vi o Freitas mexer com ninguém. As brincadeiras dele nunca ultrapassam os limites”, afirmava a Tânia, secretária e “amiga do peito” do Dr. Fernandes, manda-chuva daquelas bandas.

Enfim, o Freitas era um funcionário como outro qualquer, mas que contava com a simpatia da grande maioria. Há algum tempo, ele já vinha pensando em uma maneira de dar a guinada que precisava em sua vida.

Os últimos tempos tinham sido difíceis, porém, nosso amigo era um homem de brios e não se deixou abalar (ou não deixou que notassem). De qualquer forma, estava farto daqueles dias que não passavam, daquela mesmice e do barulho já irritante das folhas de papel que pareciam ser infinitas nas impressões intermináveis do escritório. Resolveu mudar. Seria naquela hora, não teria mais jeito, não dava mais pra agüentar aquilo tudo.

Sabia que o telefone não iria tocar de maneira alguma, pois desde a Denise ele já não tocava. Não da mesma forma.

Certificou-se de que não havia mais ninguém por perto. Para todos os efeitos, ele estaria fazendo hora extra. Levantou apressado e, aos poucos, foi aumentando o ritmo da passada em direção a janela. Não pensava em nada, somente em ser livre e em não se preocupar mais em ser só. Em morar só, em estar e sentir-se assim. Pensava em se livrar do trabalho chato e do barulho repetitivo e interminável.

Começou a correr. Nunca tinha percebido que a distância entre o seu computador e a janela era assim tão grande. Um dos resultados dessa corrida foi uma quantidade considerável de folhas de papel que acabaram caídas em função da velocidade que o Freitas precisava para completar seu plano.

Fechou os olhos e imaginou o céu. Mesmo sem asas, o funcionário mediano da Sá Cia. Industrial cruzou a janela e alçou voo, deixando para trás algumas contas, uma casa semi-mobiliada, alguns vinis que ganhou de herança do pai e um celular tocando em sua mesa.

A tela mostrava: Denise

Atender ou  Recusar?

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