Ele sente o cheiro das velas acesas e isso o conforta. É noite e a penumbra daquela capela o tranquiliza, pois o seu
dia foi agitado demais e desde pequeno nunca esqueceu do que seus avós lhe falavam
sobre acreditar em algo por mais difíceis que as coisas fossem. Dimas era um
homem de fé.
Morava no interior, onde a luz havia chegado há poucos anos.
A escola quase não foi, não senhor. Mas nunca foi passado para trás em conta de
balcão ou em compra de saca de feijão em caminhão. Era um jovem de espírito
cansado, marcado pela perda prematura dos pais. Assim, achou em Deus e nos
santos o colo que sempre lhe faltou. Participava de todas as quermesses, obras
de caridade e procissões em homenagem ao padroeiro da cidade, São Benedito, e
como se fosse à casa de um amigo querido e muito íntimo, todos os dias antes de
ir para casa entrava para rezar o “Pai nosso de cada dia”, como ele mesmo
gostava de dizer.
Era querido e conhecido de quase todos ali em Planalto,
principalmente do povo que fazia parte do dia a dia da capelinha. Ao chegar na
casa simples deixada pelos seus avós e que agora era sua, do silêncio e de
alguns cachorros, Dimas costumava sentar na varanda e ficar contando as
estrelas enquanto fumava o seu palheiro. Expelia seu cansaço misturado com a
fumaça de cada baforada.
“Minha grande, minha pequena. Mulher minha. Não te quero
mais assim, sozinha. Faço o que for por tua companhia. Amanhã mesmo irei ter
com o teu pai e teus irmãos. Sou homem de bem. Trabalho e ganho o meu pão. Sou
temente a Deus e do tinhoso não gosto, não. Desse aí que me valha, me guarde e
me livre o meu São Benedito. Te dou teto, comida e todas as metades do meu
coração, Maria Agripina. Vem comigo de
uma vez!”
Sentiu um beijo molhado no rosto e calor do sol rasgando sua
cara e todo o resto da varanda. Era o sol alto no céu e a língua de Tião, o
cachorro. Que Dimas ganhou e que já tinha esse nome. Tinha dormido e sonhado
mais uma vez com ela. Acordou com a cabeça cheia e a barriga vazia.
A primeira coisa que resolveu fazer foi pegar uma fatia bem
grossa do bolo de milho feito e dado de presente pela Dona Silvia, vizinha e
doceira de mão cheia. O galo já tinha cantado há muito. Atrás de cada mordida na
fatia vinha a mesma pergunta: “Por onde anda a Agripina?”
A 150 km uma menina de olhos redondos, de pele queimada pelo
sol e cabelos negros, lisos, que fazia questão de usá-los soltos, pois gostava
do vento que batia neles, penteava uma criança. Era Agripina e sua filha. A amiga
de infância e paixão secreta de Dimas estava longe, casada e despreocupada.
Tinha teto, comida, as metades do coração e da cama de Joca, que dizia ser
vendedor ambulante, mas nunca tinha sido visto vendendo nada. As rodas de
conversa na praça da cidadela de Consolação diziam que ele era um matador de
aluguel. Sobre esse “boato de gente desocupada”, ele nunca deixou que Maria
Agripina se inteirasse de fato.
O devoto de São Benedito nada sabia desse paradeiro. Não
encontrando respostas no seu bolo, resolveu ir trabalhar. Enxada nas costas, chapéu
na cabeça e poeira da estrada. No caminho encontrou Pedro, amigo de infância,
que tinha uma proposta quase irrecusável a fazer para Dimas.
“Preciso de alguém que me ajude numa pescaria lá no rio de
Consolação. Se você aceitar, fica com a metade dos peixes que pegarmos. Que
tal?”
Sem nem pestanejar,
Dimas aceitou o convite. Entrou na caminhonete e rumaram com destino aos
peixes. No meio do caminho, ele lembrou que não passaria na capela. Teria que
dar outro jeito de rezar hoje. Depois de quase duas horas de chão, ele e Pedro chegaram
em Consolação.
Na entrada da cidade estava acontecendo uma grande feira. Que
vendia compotas e artesanato feito pelas mulheres ribeirinhas. Os rapazes pararam para ver mais daquela
aglomeração de gente antes de seguirem para o rio. Dimas se aproximou de uma
banca com a intenção de comprar uma compota de mamão para retribuir o presente
de Dona Silvia. Ao perguntar o preço, uma menina se virou e disse “São cinco
reais, moço”. Era ela. Dimas agradeceu em pensamento e prometeu de imediato uma
vela ao seu amigo Benedito, não, duas...
“Agripina, lembra de mim? Dimas. Quanto tempo...”
“Dimas!! Oi! O que você tá fazendo aqui? Não tá mais em
Planalto?”
“Vim com o Pedro fazer uma pescaria... Como você tá
mudada... Tá bonita..”
“Obrigada, Dimas.”, em um tom envergonhado, mas sensível ao
elogio.
“Andei pensando bastante em ti nesses dias . Olha só como é
a vida...
“Olha Dimas... Se é o que eu to pensando, eu sou uma mulher
casada. E outra, sempre vi você como um amigo. A gente foi praticamente criado
juntos.”
Ele realmente não esperava que ela fosse ser tão direta.
Ficou envergonhado. Não soube mais o que dizer. Tentou balbuciar algumas
palavras, mas nada saia e nada mais fazia o mesmo sentido.
Depois dessa troca de palavras. Agripina não sairia mais da
sua cabeça. Não havia peixe, piada pronta do amigo Pedro ou água de rio que
fizesse Dimas esquecer a morena.
Após a próspera pescaria, Dimas e Pedro foram a um bar
comemorar o feito. Já estava combinado que até venderiam uma parte do que
haviam conseguido. Lá Pedro quis saber o motivo do jeito estranho do seu
ajudante. Após esclarecimentos, o motorista não se fez de rogado, disse que
conhecia o caminho para a casa de Joca e que levaria Dimas para dizer tchau a
Agripina.
Com certeza o plano pareceu muito executável após alguns
copos de cachaça. Partiram. Ao chegar a frente da casa de Maria Agripina, Dimas
desceu da caminhonete transtornado. Sentia que tudo o que não pode falar ao
longo de todos aqueles anos, devia ser falado naquele instante. Jogou seu chapéu
longe, abriu os braços e gritou com toda a força.
“Agripina!! Me escuta. Sei que agora é muito tarde pra isso,
mas eu queria que você soubesse que eu so..”
De dentro da casa veio o tiro. Dimas sentiu a dor e o calor da
bala que entrou em seu peito. Agripina gritou, mas seu grito não ia voltar o
que havia sido feito. Joca saiu correndo em direção ao mato. Nenhum vizinho
abriu porta ou janela.
“A vida é assim. Às vezes não dá tempo de terminar a frase e
todo mundo entende tudo errado. Tomara que hoje eu ainda consiga acender a
minha vela pro senhor, meu São Benedito.”
Curta-metragem na veia.
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